21 dezembro 2022

Saúde Suplementar - retrospectiva 2022


O ano de 2022 marcou o fim da emergência da pandemia. Poucos fatos, mas importantes, se destacaram na saúde suplementar. 

Venda da carteira de pessoas físicas da AMIL

O final de 2021 foi marcado pela notícia da venda da carteira de pessoas físicas da AMIL, surpresa que se estendeu para os meses iniciais de 2022.

Quando a UHG comprou a AMIL, a expectativa era a de que ela se crescesse e se multiplicasse no Brasil. Quando seu braço de tecnologia se instalou aqui, tudo parecia indicar que o Brasil era o grande mercado a ser explorado, atraindo até mesmo um grande player do mercado americano.  Mas as coisas não evoluíram no ritmo que o mercado temia esperava.

Com uma dinâmica própria e cheia de traços da cultura comercial brasileira, a gigante se viu em mercado inóspito, o que a levou, aparentemente, a lutar contra resultados muito aquém dos esperados, como demonstra a tentativa de alienação da carteira PF.

Pois bem, o negócio não evoluiu, e a carteira teve de ser reassumida pela UHG-Amil.

Mais do que um negócio desfeito, o episódio mostra a dificuldade em conciliar um serviço essencial (assistência médica) a um empreendimento provado, que visa lucros (falando exclusivamente dos planos de saúde individuais/familiares). Tudo parece indicar que, num futuro próximo, autoridades legislativas terão de reanalisar algumas das premissas estabelecidas desde a lei 9656, pois somente os planos coletivos parecem ter fôlego para sobreviver. 

O aumento recorde dos planos de saúde individuais/familiares

Este episódio já era previsível, após o deságio no ano anterior e a grande demanda gerada pela COVID. Somam-se, portanto, uma queda na mensalidade e um reajuste recorde.

O reajuste será absorvido pela maioria da população envolvida, óbvio, mas porque é um serviço tão essencial que há a disposição de corte de outras despesas para bancar a assistência médica. Ainda há o fantasma da COVID pairando no ar, o que aumenta a sensação de cautela da população.

Há que se lembrar que a saúde suplementar é baseada no mutualismo, e que as ações preventivas são a maior arma do beneficiário para que os custos não se tornem proibitivos. Mesmo assim, operadoras não parecem ter discurso convincente o suficiente para parcerias com seus beneficiários buscando esse bem comum: a saúde individual .

Ainda há muito a percorrer...

Rol taxativo e a ação da ANS  

O rol exaustivo (taxativo) foi o vencedor na discussão jurídica, como esperavam as operadoras de planos de saúde. Não sem polêmica, claro.   

Entidades que defendiam o rol exemplificativo (não exaustivo) apresentaram seus argumentos à sociedade, na intenção de mostrar como algumas condições não encontram amparo na cobertura da lei, motivo pelo qual havia o pedido da análise judicial. Esperava que houvesse pressão social para que o rol fosse considerado apenas exemplificativo

Destaque-se que o posicionamento da justica deu-se 24 anos após a edição da lei, tempo mais do que suficiente para que seus pressupostos fossem validados. Tão logo a decisão foi divulgada, entratanto, as nossas casas legislativas editaram uma nova lei determinando que, sob determinadas condições, novos procedimentos devem ser aceitos mesmo sem a manifestação da ANS. Pode ser que essa nova lei determine se essa lei é válida ou não, basta esperarmos outros 20 anos...

A ANS logo na sequência da divulgação do reconhecimento do caráter exaustivo da lei 9656, publicou uma resolução normativa adicionando coberturas relativas àquelas divulgadas por grupos contra esse posicionamento. O que nos leva a duas dúvidas essenciais: se era possível adicionar esses procedimentos ao rol de procedimentos, por que não foi feito antes? OU, na mesma linha, se esses procedimentos não deveriam estar lá, por que foram incluídos logo após a decisão?

Eu já defendi que a ANS era a agência reguladora mais atuante do Brasil. Neste caso, não parece soar como verdadeiro.

E sobre a lei que transforma o rol de procedimentos em exemplificativo, a ANS declarou que não mudaria nenhum de seus procedimentos. O que é preocupante, pois o processo, com alguns ajustes, é possível de ser assimilado facilmente pela agência, se houver alguma disposição para tal. 

A imobilidade declarada da ANS pode contribuir para o aumento da judicialização de casos, pois será o entendimento dos advogados do beneficiário contra o entendimento dos advogados da operadora (sempre será assim, mas uma eventual participação da ANS pode tornar impor referências nesse terreno ermo). Além do mais, a própria existência da agência decorre de lei, que lhe determina atribuições e incumbências. O cruzar de braços neste caso parece mesmo uma birra...

A fusão entre Rede D'Or e Sul América

Outro fato marcante do ano de 2022 é a fusão entre a Rede D'Or e a Sul América. Duas empresas solidíssimas, de ótima reputação, em negociação altamente sigilosa, fundiram, dentro de limites, suas operações, montando uma das maiores, se não a maior, empresa de saúde do Brasil.

Qual é, para a saúde suplementar, a sinergia gerada nessa fusão?

Para operadoras e hospitais, a reação foi negativa, na maior parte. Desconfianças de que ambas usariam suas posições para impor preços e condições ao(s) mercado(s).

De seu lado, o CADE (Conselho Administrativo de Defesa Econômica) aprovou o negócio. A ANS, em decisão recente, aprovou com restrições.

O fato é que as empresasa agora compõem o mesmo grupo econômico, e não há nenhum indício de prejuízo a quem quer que seja.

A fusão entre NotreDame Intermédica e HAP Vida

A fusão entre Notredame Intermédica e HAP Vida indica uma nova era na competição nacional. Duas operadoras da modalidade medicina de grupo se unem e vão enfrentar as grandes operadoras do Brasil, distribuídas entre seguradoras e cooperativas, ou o famoso sistema Unimed.

Medicinas de grupo com autação regional são concorrentes umas das outras. Por isso, sua competição é, muitas vezes, predatória. Isso facilita o trabalho dos outros contendores. Acima disso, há a política de aquisição e fusão da HAP Vida, que pode comprar quem a ela se mostrar atraente. Isso quer dizer que o potencial de crescimento da HAP Vida ainda é enorme. Ainda mais com a parceria com a Notredame Intermédica 

Já o sistema Unimed é diferente. Cada singular é uma, e não estão à venda. Em alguns locais, são invenciveis em termos de vendas, mas em outros estão perdendo terreno velozmente. Embora tenha dois pesos pesados em suas fileiras (Central Nacional Unimed e Seguros Unimed), as singulares ainda precisam se fortalecer para enfrentar essa concorrência. Talvez seja hora de uma união mais pragmática ao comercializar planos seja oportuna.


Enfim, um ano de surpresas de muito impacto, de um lado, e uma pasmaceira inquietante de outro. Que venha 2023.


09 dezembro 2022

Resoluções normativas originais e suas releituras pela ANS

conceitos de dispositivos gps vetorEntre as operadoras de planos de saúde, é comum que determinadas decisões da Agência Nacional de Saúde Suplementar (ANS) sejam mencionadas através da normativa que as instituiu. Assim é, por exemplo, o Pool de Risco, também chamado de RN 309.
Nos últimos anos, entretanto, a ANS se esforçou para diminuir a quantidade de normas, eliminando algumas cuja existência já não fazia sentido, e reescrevendo outras com maior objetividade. Algumas das normas-referência foram, em decorrência, revogadas e redefinidas sob nova numeração. Essa pequena mudança obrigou a uma mudança de rota nos GPS dos operadores da saúde suplementar.

Abaixo, publicamos os normas mais famosas no dia-a-dia operacional-processual das operadoras e sua nova numeração, conforme as mudanças citadas.

   


Só para ajudar...

09 novembro 2022

Saúde Suplementar 2.0

A ruptura causada pela Lei 9.656 e pelas normas da Agência Nacional de Saúde Suplementar


Em 1.998 houve uma alteração brusca no ambiente legal da saúde suplementar, com a promulgação da Lei 9.656. Apesar de estabelecer grandes alterações no modo de operar dos então agentes dos planos de saúde, o prazo para adequações foi de somente 90 dias.

Aquelas que viriam a ser chamadas de Operadoras de Planos de Saúde tiveram de ajustar seus processos, contratos, controles e cobranças às novas exigências, o que inaugurou um período de longos e infindáveis ajustes visando tanto atender a lei como manter os índices de lucratividade e rentabilidade existentes.

Esses ajustes incluíram tanto os processos de trabalho como a descoberta de técnicas que seriam utilizadas para controlar o uso da assistência médica de forma correta. Vale dizer, formas de regulação. Estas atividades criaram um dos setores com as regras de negócio mais complexas do mercado, já que as variáveis envolvidas são muitas e complexas.

Enxugamento do setor


As regras impostas às operadoras de planos de saúde também formaram uma barreira enorme para a entrada de novas empresas, inicialmente desconsiderada por muitos empreendedores. Até que o tempo se apresentou mostrando aos aventureiros que o negócio da saúde suplementar não é para amadores. Empresas que inicialmente encararam o desafio começaram a fechar, temendo as normais mais restritivas ou porque o horizonte de ganhos era mais difícil do que parecera a princípio.

Ademais, a ação da ANS com relação às empresas que não apresentam condições de se manter no mercado continua fazendo com que o setor continue encolhendo (sob o ponto de vista de quantidade de operadoras).  

Fusões e aquisições

 
Num outro movimento, que visa buscar ganhos de escala, houve grandes ações de fusões e aquisições entre as operadoras existentes ou por parte de quem queria entrar no setor. Essas ações continuam e, junto aos ganhos de escala, buscam também economias de escala, já que ambas as coisas estão entrelaçadas.

Importante salientar que desde a promulgação da lei, houve ganhos de produtividade proporcionados pela utilização da informática no dia-a-dia das operadoras, em especial com adoção de TIC (tecnologias de informação e comunicação), amplamente utilizadas para agilizar processos internos, realizar controles impossíveis de realização manual, e estabelecer comunicação entre os atores da saúde suplementar.

Desafios do setor hoje


Os custos médico-assistenciais continuam sua trajetória de alta. A adoção de novas tecnologias é inevitável, assim como o é o aumento de custos inerentes.

Os custos administrativos, embora não apresentem uniformemente tendência de alta, são relevantes já que os custos assistenciais estão consumindo partes cada vez maiores de receitas. 

Um terceiro fator da equação dos desafios é o envelhecimento da população, já que a tendência é o aumento da demanda por serviços médico-hospitalares, consumindo também cada vez maiores parcelas da receita, já que essa demanda aumenta a taxa de sinistralidade, que é a base relacional da saúde financeira da operadora. Devemos lembrar que a saúde suplementar é baseada no princípio da mutualidade, em que aqueles que demandam pouco (jovens e população saudável) equilibram as despesas dos que demandam muito (população mais idosa e população com doentes crônicos ou descompensados).

De quem é o problema


Engana-se quem acha que esses problemas são exclusivamente das operadoras de planos de saúde. O problema é de todos os atores da saúde no Brasil. Num microcosmo, quando uma operadora é liquidada, todos sofrem: beneficiários/pacientes, prestadores (médicos, clínicas, hospitais, laboratórios), os contratantes empresariais, sem exceção, pagam algum preço em decorrência do problema.

Já temos, no Brasil, um exemplo perverso disso: a previdência social. Achando que é um problema de governo, esquecemos que é um problema de Estado que atinge a toda a população, a ponto de ameaçar inviabilizar a aposentadoria de gerações futuras.

Imaginemos, então, na saúde suplementar, que os fatores elencados causem um aumento expressivo nas mensalidade dos contratos em vigor e de novos contratos. O plano de saúde poderia, rapidamente, se tornar inviável para a grande maioria da população. Ah, sim, mas já é, não é? Somente 25% da população está coberta por contrato de assistência médica. O SUS precisa se encarregar da população restante. Qual será o cenário se essa parcela demandante do SUS aumentar?

Antes da primeira eleição de Barack Obama, a história nos conta como ele e sua então rival Hillary Clinton tiveram que dar atenção aos altos custos da saúde nas empresas americanas, cuja lógica de financiamento era diferente da brasileira. 

Portanto, o problema é de todos, sem exceção.

Necessidade urgente: a evolução da inteligência aplicada


Disruptura tecnológica


Quando se fala em disruptura, o mercado tem se referido às tecnologias em TICs. Ou, ao menos, parte do mercado interpreta dessa forma. E é verdade. Do já longínquo ano de 1998, a tecnologia se aprimorou enormemente. Sistemas de gestão foram aperfeiçoados, novos componentes foram agregados, as regras de negócio explodiram em quantidade e complexidade, e softwares foram incrementados.

Mas já há discussões sobre quais seriam as melhores formas de utilizar o software. Sistemas com regras de negócio estáticas, universais, inflexíveis ainda têm lugar? Há como explorar a tecnologia para ganhos reais direcionados à saúde? Valor dizer: direcionados aos custos assistenciais?

Disruptura de processos


Se a tecnologia de informática deve ser disruptiva, também devem ser os processos adotados.

Afinal, há processos que pouco ou nada mudaram nesses mais de 20 anos da saúde suplementar regulamentada. As contas médicas ainda são auditadas quase da mesma forma; autorizações ainda exigem 7 dias úteis (um exemplo) para análise; as contas médicas são pagas em 30 dias; a operadora é uma intermediária entre o beneficiário e seus procedimentos médicos. 

Por isso, os processos devem ser disruptivos o suficiente para fazer frente à nova necessidade de diminuição de custos administrativos. Uma inteligência empresarial aplicada, valendo-se da tecnologia e de profundo conhecimento da saúde suplementar podem ser um grande diferencial no desafio que se apresenta.

Engajamento do paciente/beneficiário


Aquele que tem plano de saúde foi enormemente beneficiado pela Lei 9.656 (e, óbvio, seus desdobramentos e normas decorrentes). Mas não o tornou parceiro da operadora O relacionamento entre eles é comercial. O beneficiário paga, recebe assistência médica. Não paga, não receb. Quando tem um procedimento negado, o beneficiário reclama que "pagou a vida toda, mas quando precisou...".

O médico assistente do beneficiário não o lembra de que a operadora é seu elo de ligação. E nem sempre é mesmo. Ambos (médico e operadora) são conectados por um contrato, que pode ser cancelado a qualquer hora, e amanhã o médico que o atendeu hoje pode não estar mais disponível. Mas o beneficiário confia mesmo é no médico, algumas vezes até cegamente. A ponto de pagar procedimentos diretamente, se acreditar que isso o beneficiará.

Como o grande mote atual das operadoras é a prevenção (da doença, do risco ou do agravamento), essa falta de conexão é uma grande barreira. A falta de parceria se mostra em sua face mais grave: o beneficiário  não se engaja. 

Por isso, uma disruptura enorme seria o engajamento do beneficiário nas ações da sua própria saúde. Antes de se tornar um paciente, o beneficiário pode ser persuadido a investigar de forma precoce suas ameaças, a aderir a um plano de controle de suas condição atual, ou a aderia a um plano de tratamento. Um engajamento disruptivo, que concretizaria a migração da saúde suplementar dos aspectos curativos para os aspectos preventivos.

Disruptura: ampla, geral e irrestrita.

04 novembro 2022

Saúde Suplementar: dificuldades para operadoras


Segundo dados da Sala da Situação da ANS, no 2º Trimestre de 2022 a taxa de sinistralidade das operadoras de saúde médico-hospitalares no Brasil foi de 87,9%. Esse número é bem distante do número mágico imaginado pelas empresas do setor, de 75%, considerado nível ótimo para esse indicador.

É preciso lembrar que neste ano de 2022 houve o maior reajuste já concedido pela agência aos contratos de pessoas físicas:  15,5%.


A participação dos planos de pessoas físicas no total de contratos da saúde suplementar é de 18%. Os demais contratos, os coletivos empresariais e por adesão, têm índice resultante de negociação entre as partes, e normalmente são bem maiores do que os aplicados aos contratos individuais/familiares. Mas considerando essa referência já alta (reajuste de 2022), pode haver dificuldades nessa negociação, embora tenha havido, de fato, aumento das despesas assistenciais.

Uma evidência das dificuldades por que passam as operadoras pode ser observado nas resoluções operacionais emitidas pela ANS em 01/11/2022. Foram sete, sendo que somente uma delas é, em tese, uma boa notícia, pois encerra um regime de direção técnica. As demais ou instauram regimes de direção especiais, ou decorrem da extinção futura da operadora (inclusive a beneficiada pelo fim do regime de direção técnica...).

Com esse percentual de sinistralidade, somente resta à operadora o gerenciamento devido seus custos, sejam assistenciais, sejam administrativos.

Os custos administrativos têm a característica de serem custos cuja origem é de difícil percepção. Aliado à essa dificuldade está o fato de que as empresas não têm o hábito de exercer a dúvida sistemática cartesiana em seus processos internos: 
  • Estamos fazendo da melhor maneira? 
  • Há um jeito melhor de fazer o que fazemos? 
  • Podemos fazer com menor custo? 
  • Quanto custa o que fazemos? 
  • Por que fazemos?
Já presenciamos casos de redução dos custos administrativos em 50%, em uma cooperativa médica de médio porte. Somente pela análise isenta e objetiva baseada nas reflexões listadas.

Já os custos assistenciais precisam de enfoque mais criativo. O grande desafio é engajar o beneficiário do plano de saúde quanto ele ainda está saudável. Rastrear possíveis doenças crônicas para identificá-la ainda nos seus estágios iniciais e promover o tratamento o mais cedo possível. A barreira a essa abordagem é a adesão do beneficiário, que nem sempre tem é persuadido de forma a tomar as rédeas da própria saúde. Além disso, há o controle de doenças já instaladas. Nem sempre há uma ação assertiva relacionado a esse tema, e o agravamento da condição implica no aumento dos custos de tratamentos.

Neste ponto, há que se ressaltar a atuação burocrática das operadoras de planos de saúde. Normalmente o beneficiário lhe é invisível, e se destaca somente quando suas despesas o evidenciam como um high user, aquele que gera muitos gastos. Até então, a operadora se limita e emitir os boletos e analisar as demandas (pedidos de autorização), sem ações positivas que de fato engajem o beneficiário em ações preventivos e de melhoria de qualidade de vida.

Se este indicador (taxa de sinistralidade) continuar subindo, é bem provável que presenciemos mais operadoras sendo liquidadas pela ANS. A consequência mais trágica disso, além de todos os empregos eliminados, é que o beneficiário passa por um período de grande pressão, já que ou passará compulsoriamente para uma operadora (no processo de alienação de carteira) ou precisará procurar, ele mesmo, uma operadora que seja adequada aos seus interesses (no caso da portabilidade especial).

Não há ganhadores nesse cenário.  



23 setembro 2022

O fim do rol taxativo: dificuldades esperadas na Saúde Suplementar (Lei 14.454)


Com a promulgação da Lei 14.454 em 21/09/2022, as operadoras de planos de saúde são obrigadas a cobrir, desde que atendidas algumas exigências, procedimentos que não estejam no Rol de Procedimentos e Eventos em Saúde (chamado simplesmente de ROL). O Rol especifica qual é cobertura a ser observada para os contratos de assistência médica e odontológica. (O Rol atual está neste link).

Sem considerar os impactos financeiros da medida (abordados superficialmente aqui), é preciso considerar que há impactos em outros pontos, que exigirão muita energia dos atores da saúde suplementar. Senão, vejamos.

ANS

A ANS se manifestou em relação à Lei, ainda antes de sua pronulgação. Destacamos o seguinte trecho:
"Importante ressaltar que o processo de revisão do Rol não será alterado. A Agência continuará recebendo e analisando propostas de inclusão via FormRol de forma contínua, com as incorporações podendo acontecer a qualquer momento, e com ampla participação social". (O grifo é nosso)
A falta de definição de um processo para atender à nova exigência da Lei pode vir a ser um problema, uma vez que as Operadoras de Planos de Saúde (OPS) dependem da ANS em diversos aspectos para autorizar e/ou pagar o procedimento realizado.

Ademais, a nova lei passa a compor o arcabouço legal do setor, obrigando a agência ao seu atendimento, parecendo extrema a posição de não aterar nada em seus processos em situação que pode vir a ser comum.

Não nos parece que seja parte de suas funções se manifestar desta ou daquela forma sobre leis positivadas. Mas é parte de suas funções agir para que estas sejam cumpridas da melhor forma possível, de forma a evitar problemas e turbulências no setor.

Operadoras de Planos de Saúde

A lógica de trabalho da operadora atualmente está vinculada a um rol taxativo. É com base nesse rol que a OPS busca seus fornecedores (hospitais, clínicas, profisionais) e com eles ajusta as condições de  prestação de serviços. E, com base nessa contratação, recebe os pédidos de autorização para realização do procedimento, e o fará com base no contrato assinado. É de se registrar que as normas exigem que o procedimento esteja previsto expressamente no contrato, inclusive mencionando o código TUSS (Terminologia Unificada da Saúde Suplementar), que não existirá em casos de procedimentos fora do Rol.

No caso de um procedimento fora do Rol, qual deverá ser o comportamento da operadora?
  1. Verificar se atende aos quesitos da Lei 14.454. Parece que, na falta de ação da ANS, esse julgamento poderá depender exclusivamente da OPS, o que pode acarretar desigualdades de tratamento no país. O próprio caráter genérico do contido na lei dificulta a padronização dessa avaliação.
  2. Identificar prestadores de serviços médico-hospitalares aptos a realizar o procedimento. Esse processo necessita ser rápido, principalmente por causa dos prazos de atendimento, que continuam valendo. Mas e se não forem identificados prestadores, ou a negociação não for bem sucedida? Como negociar parâmetros de um processo novo?
  3. Autorizar o procedimento. Sob que código? Sob que condições?
  4. Pagar o procedimento. De acordo com a negociação relâmpago que aconteceu.
  5. Providências complementares. Providências administrativas, contábeis, financeiras e de prestação de informações à ANS.

Poder judiciário

Com a Lei 14.454, o poder judiciário ganha importante papel como ator na Saúde Suplementar.
Vejamos o contido no Inciso I do § 13 do Artigo 10:
"a cobertura deverá ser autorizada pela operadora de planos de assistência à saúde, desde que:
I - exista comprovação da eficácia, à luz das ciências da saúde, baseada em evidências científicas e plano terapêutico"
Como se dará essa comprovação de eficácia? Quais são as evidências científicas? O que analisar no plano terapêutico? 

Com menos imprecisão, o poder judiciário já está abarrotado de ações concernentes à Saúde Suplementar. Com estas novas (in)definições (além de outras da nova lei), há uma forte tendência de que continue em espiral crescente a judicialização do setor, na contramão do que pretendia a decisão do STJ que definiu que o Rol era exaustivo (taxativo).

Aqui, precisamos voltar ao papel da ANS. Como agência reguladora, é seu papel definir as regras de operacionalização do que prevê a Lei. A Lei 9.656 é um grande exemplo, em que as diretrizes são ali  definidas e a agência as operacionaliza em forma de normas. Case a ANS se abstenha de agir proativamente para atender de forma célere as novas regras, estará contribuindo para desperdício de energia e acúmulo de desgaste no setor.

O beneficiário/paciente

Entidades e celebridades comemoraram a nova lei como um ganho social. E de fato pode vir a ser. 

No momento, dadas as dificuldades operacionais e a resistência de setores à novidade, podem garantir somente desilusão ao beneficiário. A estes, é recomendável que sempre obtenham uma segunda e mesmo uma terceira opinião para seus problemas de saúde, principalmente em situações de procedimentos invasivos e de risco potencial. 

Ainda não há panacéia para cura de doenças, ainda que a prevenção seja muito poderosa. Mas sopa de pedra com açúcar ainda não salva vidas.

Imagem de Arek Socha por Pixabay 





09 setembro 2022

O fim do Rol taxativo - As operadoras saem perdendo?


O senado acaba de aprovar o Projeto de Lei 2033/2022, que determina que as Operadoras de Planos de Saúde devem cobrir tratamentos que não estiverem no Chamado Rol de Procedimentos da ANS. Na prática, a medida determina o fim do ROL taxativo, expandindo a cobertura para procedimento(s) que: 
  • tenha eficácia comprovada cientificamente;
  • seja recomendado pela Comissão Nacional de Incorporação de Tecnologias no Sistema Único de Saúde (Conitec); ou 
  • seja recomendado por pelo menos um órgão de avaliação de tecnologias em saúde com renome internacional.

Fonte: Agência Senado

Já aprovado pela Câmara dos Deputados, o PL se apresenta como resposta à decisão do STJ que considerou taxativo o ROL da ANS (ou exaustivo), ou seja, somente os eventos ali listados deveriam ser cobertos pelos contratos de planos de saúde.

Mal foi aprovado na Câmara, o PL sofreu críticas de OPS, entidades de classe e analistas da Saúde Suplementar, alegando que a falta de previbilidade dos gastos acarretaria grande insegurança no setor, podendo mesmo prejudicar os beneficiários dos planos de saúde.

Será que a perda é assim tão relevante?

É preciso destacar que os beneficiários dos planos de saúde se dividem em dois grupos: contratantes individuais/familiares e contratantes coletivos. 

Os contratantes individuais representam pouco mais de 18% do total de beneficiários (Fonte: IESS. Disponível em https://iessdata.iess.org.br/dados/bmh. Acesso em 09/09/2022). Para este grupo, os reajustes de preço são determinados pela ANS, anualmente. Uma característica deste grupo é a baixa oferta ao mercado, justamente pelo controle exercido pela agência reguladora.

Já os contratos coletivos, embora tenham um acompanhamento de reajuste pela ANS, têm seus reajustes determinados pela negociação entre as partes (exceção aos contratos com menos de 30 vidas, cujos reajustes são aplicados de acordo com regras definidas para todo o grupo, chamado de Pool de risco). Também é necessário destacar que normalmente os contratos deste grupo contêm cláusula de sinistralidade (stop-loss), caso a sinistralidade ultrapasse determinado limite. Também é importante termos em mente que o reajuste destes contratos centra-se na negociação, e a sinistralidade do período anterior é computada para incorporar eventuais riscos à nova mensalidade (o que também normalmente se aplica ao Pool de risco).

Então, na prática, há duas situações. Os contratos de pessoas físicas podem, sim, acarretar alguma perda inicial para as OPS que tenham enfoque neste tipo de público . No decorrer do processo, entretanto, incorporando-se os dados da utlização dos eventos adicionados, os contratos novos terão precificação correspondente aos riscos computados. O novo preço deve, obviamente, cobrir as perdas anteriores e incorporar os riscos identificados

Já os contratos coletivos compensarão suas perdas tanto na cláusula de stop-loss, ao receber aportes referentes ao excesso de uso, como na aplicação do reajuste que, livre do arbítrio da ANS, pode ser condizente com a utilização identificada. E também há a questão do preço inicial, em que novos contratos terão seu preço inicial majorado pelos dados da utilização na nova realidade.

O mercado da saúde suplementar é mutualista. Além do ajuste dos valores, ocorridos em uma ou noutra fase, os valores terão a ação financeira da Teoria dos Vasos Comunicantes (teoria emprestada da física), já que a perda no primeiro momento será compensada no momento seguinte através da majoração das mensalidades. 

Afinal, o mercado tem uma forte capacidade de reação, e resiliência é o que não lhe falta.


Imagem: Pixabay

 

22 julho 2022

Reengendrando a Saúde Suplementar


As Fintechs, ao surgirem, desafiaram a lógica tradicional do mercado bancário. Pelo uso da tecnologia, remodelou e aperfeiçou processos relacionados ao atendimento ao cliente, concessão de crédito, pagamentos e taxas de serviços. Essas características, durante a pandemia, fizeram com que muitos abrissem uma conta em bancos exclusivamente digitais. 

O maior sinal de sucesso das fintechs é  interesse dos bancos tradicionais nesse tipo de empresa. Uma grande evidência desse reconhecimento é o APP da Caixa Econômica Federal, o CaixaTem, que processou os pagamentos do Auxílio Emergencial e que tem processo de abertura e movimentação totalmente online.

O processo de idealização das fintech considerou soluções para problemas comuns do setor. Um dos fortes apelos é a dispensa de várias taxas de serviços, parcial ou totalmente. Por ser uma estrutura mais enxuta, com processos melhor modelados, o modelo prescinde de taxas, fizem alguns dos CEO dessas empresa.

A Saúde Suplementar brasileira poderia adotar soluções inspiradas nas fintechs. Senão vejamos:

Desde a promulgação da Lei 9.656 e o início de sua vigência, em 1999, poucas alterações aconteceram nos processos das principais operadoras. Em pouco mais de 20 anos, as coisas são realizadas exatamente do mesmo jeito que sempre foram, apesar da farta tecnologia disponível. Exceção, talvez, às vendas dos planos de saúde, que muitas operadoras de planos de saúde (OPS) disponibilizaram de forma online.

Mas o processo de pagamento das contas médicas, por exemplo, segue o mesmo padrão: ao final de um período, as contas são fechadas pelo prestador de serviços, são encaminhadas à OPS, que as analisa detalhadamente para realizar o pagamento dentro de um período determinado de tempo. Nessa lógica, entre a data do atendimento e o pagamento podem decorrer, por exemplo, sessenta dias (a depender das regras contratuais).

Uma "OPSTech", ou uma operadora inovadora, baseada em tecnologia, tem toda condição de acompanhar o atendimento ainda em sua evolução, validar os procedimentos e insumos utilizados e pagar imediatamente após a alta do paciente os valores já consensados. Impactos no fluxo de caixa? Certamente, mas concomitantes com impactos positivos na relação com o prestador de serviços.

Outro ator da saúde suplementar que pode ser privilegiado é o beneficiário do plano de saúde. Hoje, muitos procedimentos são regidos por regras de regulação, que podem incluir até mesmo a necessidade de deslocamento até a OPS. Esses procedimentos regulatórios desagradam o beneficiário/paciente, desgastando ainda mais uma relação historicamente ruim.

Pois bem, uma OPSTech, adotando a linha de ação das fintechs, pode rever algumas dessas medidas regulatórias e disponibilizar ferramentas e processos de maneira que o beneficiário possa resolver suas demandas através de seu smartphone , de maneira rápida, fácil e sem gerara maiores desgastes. E, ainda, ajustar a regulação para itens que realmente sejam merecedores desse cuidado, identificados em avaliação de dados reais de atendimentos.

Há muitos outros processos nas OPS que podem ser aperfeiçados pela utilização da tecnologia. Atividades que hoje são pura burocracia podem ser eliminadas ou reengendradas, de forma a oferecer um melhor desempenho aos processos. E, com o foco no prestador de serviços e no beneficiário, a tecnologia pode desequilibrar o jogo em favor de quam a utiliza.  

Imagem: Pixabay

07 julho 2022

Quando vai ser a próxima corrida



Quando vai ser a próxima Corrida?


Lourenço Diaféria

Você venceu!
Você chegou onde queria.
Se lembra quando lhe disseram que a parada iria ser dura?
Muitos nem tentaram.
Muitos desistiram.
Muitos desanimaram.
Muitos falaram que não valia a pena.
Mas você chegou onde queria.
Foi difícil, a pista estava escorregadia.
Quantas pedras no meio do caminho.
Não eram todos que aplaudiam. Alguns o olhavam com olhar de descrença, diziam: - Coitado, é um sonhador.
Bolhas nos pés, tênis apertado, o suor escorrendo pelo rosto, a ladeira íngreme, e o dramático instante da dúvida: paro ou continuo?
Uma decisão apenas sua.

Alguns estavam caídos de cansaço e tédio.
Havia ainda um longo caminho pela frente,
e havia mais curvas do que retas.
Alguém o animou - Força, cara.
Alguém o provocou - E agora, cara?
Alguém tripudiou - Larga disso, cara.

Lembra?, você teve uma baita vontade de ir embora, de pegar suas coisas e dizer - Tchau mesmo, quero que tudo se lixe, pra mim chega, já dei minha cota, não tem mais jeito - e virar as costas à luta, à incompreensão, ao sacrifício.
Você teve vontade de ir para uma ilha deserta onde vertessem leite e mel.

Você olhou em frente. O horizonte era uma sombra parda.
Mas mesmo nessa hora tensa, pelo sim pelo não, você não parou de correr.
Talvez tenha diminuído o tamanho do passo, porque ninguém é de pedra e o coração da gente não pode ser medido com trena e compasso.
Mas você não parou porque sabia que no meio da multidão havia um recado mudo aguardando a sua decisão.
De sua decisão dependia a esperança de gente que você nem conhecia.
Então você tomou um fôlego, abriu o peito, e com os pés no chão e os olhos lá na frente, mandou ver.
Não importava tanto a colocação.
Você lutava para construir a sua parte no edifício do destino.

E foi seguindo.
Sem perceber, arrastou com seu exemplo muitos que pensavam em ficar no meio do caminho.
E você venceu.
Você chegou onde queria.

Ou você não venceu.
Você não chegou onde queria.
As coisas não deram certo, você tropeçou, havia um buraco, e outro buraco, e mais um buraco no chão feito de armadilha.
Você caiu, rolou, ah, houve gente que riu!
Alguém vaiou.
Você não venceu. Você não chegou onde queria.
Esfolou a pele, abriu ferida, em vez de estrelas o cobriu um manto cravejado de ridículo.
O suor de seu rosto foi em vão.
Em vão seus músculos latejaram.
Tudo em vão.
Apanhe seu embornal de mágoa, fique de mal com o mundo, abandone a pista.
Você teve a tentação.

Mas na multidão alguém esperava seu gesto de conquista.
Vamos, rapaz, esfregue a perna. Levante os ombros.
Não deixe que se apague o brilho dos seus olhos.
Escute o bater abafado do coração que insiste.
Você está vivo, e não está vivo à toa.

Você se levantou, se lembra?, e a vaia lhe soou como sinfonia.
Recomeçou a corrida e quando, por fim, você chegou - não em primeiro, como sonhava - mas chegou, o suor de seu rosto parecia purpurina.
Todos pensavam que você estivesse satisfeito por haver chegado.
Então você recolheu os retalhos de suas forças e perguntou:
- Quando é que vamos disputar a próxima corrida?
E foi neste momento que você venceu e chegou onde queria!

05 julho 2022

Ainda sobre a decisão do STJ - Rol Taxativo


Um dos casos mais citados na questão do Rol Taxativo da ANS foi a dos portadores de transtorno de espectro autista. O apresentador Marcos Mion citava a falta de cobertura para diversas necessidades desse grupo como argumento para que o Rol fosse exemplificativo.

Não é recente a judicialização na saúde suplementar. Ela é, inclusive, uma das geradoras da necessidade da lei, na medida em que diversos contratos pré lei 9.656 continham cláusulas abusivas, derrubadas somente por decisão judicial.

Representantes de operadoras se agrupam para apresentar seus argumentos aos magistrados sobre algumas das causas mais frequentes de ações, tentando influenciar, com argumentos técnicos, a decisão jurídica.

Nem sempre a judicialização é imotivada, observando-se estritamente a Lei 9656. Há de fatos casos em que, não fosse a judicialização, o beneficiário de plano de saúde sairia prejudicado. Há casos em que o argumento técnico vence, como nos casos de tratamentos experimentais.

Com  todos os argumentos em favor da exaustividade da lista (Rol Taxativo), era de se imaginar que a cobertura era adequada também a esses casos, e que as ações seriam uma exarbação, certo? Afinal, uma das atribuições da agência era manter e atualizar, sempre que necessário a relação dos procedimentos cobertos pelas operadoras, sem suas diretrizes e parâmetros.

O que justifica, então, a Resolução Normativa 539, que regulamentou a cobertura obrigatória de "sessões com psicólogos, terapeutas ocupacionais e fonoaudiólogos, para o tratamento/manejo dos beneficiários portadores de transtorno do espectro autista e outros transtornos globais do desenvolvimento"?.

Se a cobertura ali indicada era necessária, porque ainda não estava contemplada? Qual o motivo da coincidência entre a publicação da norma e a decisão do STF? Era realmente injusta a negativa de cobertura sobre os procedimentos ora encamados?

Como se não bastassem estranhezas, que tal o Comunica 95, emitido pela ANS em 23/06/2022?

... COMUNICA para todas as operadoras de planos de saúde que por determinação judicial ou por mera liberalidade, dentre outras hipóteses, já estiverem atendendo aos beneficiários portadores de transtorno do espectro autista e todos os beneficiários diagnosticados com CIDs que se referem aos Transtornos Globais do Desenvolvimento (CID-10 - F84) em determinada técnica/método/abordagem indicado pelo médico assistente, reconhecidos nacionalmente, tal como a ABA (Análise Aplicada do Comportamento), não poderão suspender o tratamento, sob pena de vir a configurar negativa de cobertura.




23 junho 2022

ANS e o beneficiário

Foto: Pixabay

Após a grande repercussão negativa da decisão do STJ sobre o Rol de Procedimentos da Agência Nacional de Saúde Suplementar, esta se viu no centro de muitas críticas de todos os setores. Em entrevista para o Estado de São Paulo (disponível para assinantes), o presidente da agência, Dr. Paulo Rebello, afirma que a ANS defende o beneficiário. Será?

Segundo a lei que criou a agência, Lei 9961/2000, "A ANS terá por finalidade institucional promover a defesa do interesse público na assistência suplementar à saúde, regulando as operadoras setoriais, inclusive quanto às suas relações com prestadores e consumidores, contribuindo para o desenvolvimento das ações de saúde no País" (artigo 3º).

Pelo enunciado da lei, o setor se compõe basicamente de três atores sob a tutela da ANS: as operadoras, os prestadores e os consumidores. De que forma proteger o beneficiário poderia ser considerado como uma atuação equidistante?

Pode-se se argumentar que o consumidor é a parte hipossuficiente na relação, e que por esse motivo a defesa pela ANS seria necessária. Entretanto, é preciso lembrar que a Lei 8078, chamada de Código de Defesa do Consumidor estabelece as bases em que essa proteção contra forças maiores deve acontecer.

Não por acaso, na definição de suas atribuições, o legislador menciona o Código de defesa do consumidor no seu artigo 4º: XXXVI - "articular-se com os órgãos de defesa do consumidor visando a eficácia da proteção e defesa do consumidor de serviços privados de assistência à saúde, observado o disposto na Lei no 8.078, de 11 de setembro de 1990.

Então, não é razoável supor que a agência atue em favor de qualquer dos atores de forma isolada.

Quanto às críticas ao posicionamento da agência na questão do Rol de Procedimentos, entendemos que não cabe à agência qualquer posicionamento que não decorra do conjunto legal que lhe incumbe normatizar e fiscalizar. Se a Lei 9656 (e as coorelacionadas) definem que ela elaborará um rol de procedimentos a ser observado nas coberturas, ela não poderia inovar além dessa atribuição legal. Sempre é bom lembrar que as normas das agências reguladoras estarão sempre sujeitas ao escrutínio legal, sendo que já houve decisões da agência derrubadas, por exemplo, pelo STF.

Dessa forma, não poderia a agência senão defender o Rol taxativo (exaustivo), que é o conceito com que o mercado trabalha desde a promulgação da lei.

A meu ver, as críticas seriam melhor direcionadas ao poder legislativo, que é o responsável, em primeira instância, por esse tipo de definição.

Há outros casos que deveriam ser objeto de melhor análise, tanto dos consumidores quando da ANS.

Regulação de procedimentos (autorização prévia)

Há uma norma da ANS (Resolução Normativa 259/2011) que estabelece os prazos máximos de atendimento de uma demanda de procedimento médico-hospitalar. Pela norma, o prazo máximo admitido é de 21 dias úteis (grifo nosso). Mas quando o procedimento tem a necessidade de passar por uma análise técnica (autorização prévia) o prazo pode ser bem maior. A RN 395/2016 estabelece que, nestes casos, a resposta deve ser tal que atenda ao prazo máximo estabelecido para o caso. Não é o que se observa, entretanto, na prática das operadoras. Algumas definem, por exemplo, 14 dias como prazo máximo, sem considerar o prazo máximo do procedimento.

Para agravar a situação, o beneficiário médio desconhece os prazos previstos e a própria norma. Como a norma exige que o beneficiário acione a operadora para exercer o direito a esse prazo limite, isso raramente acontece. Concorre para o problema o fato de que a operadora pode indicar qualquer prestador habilitado a realizar o procedimento. Caso o beneficiário queira escolher, tem de se submeter à dispinibilidade do escolhido.

Já testemunhamos casos em que o beneficiário aciona a operadora para que haja definição de profissional/entidade para garantia de atendimento e a operadora simplemente apresenta uma relação de seus credenciados, muitas vezes já consultados pelo paciente. Ou seja, o problema é do beneficiário. Nem todas as operadoras, nesses casos observados, se articulam com seus prestadores para agendar o atendimento, o que deveria o curso lógico das coisas.
 
A ANS age, nesses casos, quando há manifestação (reclamação) do beneficiário, Se este não conhece a norma e, por isto, não reclama, a ANS não tem mesmo como agir.

Um agravante para o problema é que, nos casos de regulação previstos pela operadora, embora haja normativo (Resolução CONSU nº 8) que estabelece a obrigatoriedade de ... informar clara e previamente ao consumidor... no instrumento de contrato e no livro ou indicador de serviços ... os mecanismos de regulação adotados esta norma não é observada por muitas operadoras. Analisando um contrato de plano individual de uma operadora de grande porte (mais de 100.000 beneficiários), há a seguinte previsão a esse respeito: 
Os procedimentos que exigem autorização prévia poderão ser consultados através do telefone...

Isso dá  ao beneficiário pouca ou nenhuma informação sobre como se processa de fato a regulação, e o torna refém dos processos da operadora. A informação contratual necessária engloba minimamente quais procedimentos estão sujeitos a regulação, quais são os requisitos de análise e o prazo máximo para que a decisão seja informada, mas não é o que se observa. É oportuno registrar que esses contratos não estão sujeitos a alteração decorrentes de negociação, sendo, portanto, de adesão. Essa característica poderia ser utilizada pela agência ao exigir que o contrato base lhe seja enviado, para validar esse tipo de cláusula. 

Ainda sobre o prazo, é justo dizer que a Resolução Normativa 424/2017, que estabelece as regras para a realização da Junta Médica, estabelece, no seu artigo 4º, que o processo de autorização prévia não deve exceder o prazo máximo de atendimento estabelecido para o caso. 

Mas na prática as negativas de autorização são direcionadas ao beneficiário, que pode ou não solicitar a junta médica. Muitas vezes não o faz, pela complexidade das regras, apesar de ser obrigação da operadora, ao informar a negativa, informar também a possibilidade de solicitar o parecer de uma junta médica ou odontológica.    

Planos individuais/familiares

Não é segredo que os planos individuais e familiares estão em processo de diminuição. Isso se deve principalmente ao fato de que os reajustes para esses contratos não é definido pela ANS, mas sim de comum acordo entre as partes (exceção feita aos planos coletivos com menos de 30 vidas). Operadoras simplesmente deixaram de comercializar os planos de espécie, sem que isso infrinja qualquer lei. 

Este é um exemplo de que a ANS não pode proteger o beneficiário. Por ser uma questão que lhe foge da alçada, esta é uma questão a ser enfrentada pelo legislador, a quem incumbe captar os desejos dos seus representados e positivá-los em regra jurídica.

Dessa forma, as críticas à ANS devido à sua falta de ação neste problema são injustas. 

Entretanto, depois do anúncio recente do aumento recorde dos contratos individuais e familiares, diversas empresas se manifestaram apresentando denúncias de reajustes de até 80%

Existe um arcabouço legal, baseado na livre contratação e disposição de cláusulas contratuais que faz com que a empresa celebre contratos com quem bem entenda, tendo o cuidado de analisar bem as cláusulas do que está contratando. Normalmente, o reajuste se baseará em critérios previamente ajustados, o que, em tese, o tornaria adequado. Não é o que se vê. Os critérios de reajuste são muito complexos e dependem de informações que ou não estão disponíveis, ou que o contratante não sabe analisar. Muitas empresas acabam judicializando o reajuste, cabendo à justica a decisão final. 

Cabe aqui lembrar que o celebrante do contrato é a pessoa jurídica, que o faz em benefício de seus funcionários e, eventualmente, familiares. Neste caso, há a atuação do poder judiciário, que repetidas vezes revê esses aumentos.  

Acesso a serviços de urgência e emergência

Um beneficiário de uma determinada operadora, necessitando de pronto atendimento, se dirigiu ao hospital que sabia prestar esse serviço. Lá chegando, foi informado de que o serviço não estava mais disponível. Foi a outro prestador hospitalar, com o mesmo resultado. Mas no portal coprativo da operadora ambos estavam listados. Em um terceiro, ficou sabendo que o serviços estava, sim, disponível, mas somente para atendimento de ginecologia e obstetrícia (um hospital geral). O beneficiário finalmente teve atendimento no SUS. 

Embora haja a obrigatoriedade de divulgação da rede assistencial em portais corporativos, não há uma regra específica sobre serviços de urgência e emergência. Dessa forma, após o relato do beneficiário, consultamos portais de diversas operadoras para ver como a questão era tratada. Alguns apresentam esses serviços de forma isolada. Outros, não. Dentre os que não apresentam, estão várias operadoras de grande porte (acima de 100.000 vidas). 

Serviços de urgência e emergência têm um tratamento especial na lei e nas normas. Têm carência diferenciada, não podem ser objeto de processos de autorização prévia, têm uma previsão de garantia de atendimento à parte. Por isso mesmo, merecem destaque na consulta da rede. Não somente quem presta os serviços, mas também que serviço presta. No caso citado, o beneficiário foi a um hospital geral e não foi atendido, porque o contrato com a operadora não abrangia o serviço.

Não há que culpar a operadora pelo fato. O que é exigido pela norma está lá, na grande maioria das vezes. Afinal, o atendimento no SUS vai gerar uma cobrança a essa operadora, muitas vezes maior do que o valor que pagaria diretamente. O que pode mudar é a exigência prevista na norma, ao estabelecer a obrigatoriedade dessas informações (literalmente) vitais.  

Falando com a ANS

O beneficiário pode se dirigir à ANS para tirar dúvidas? Embora a resposta seja positiva, quem tentar pode se frustrar.

As respostas dadas pela agência a que tivemos acesso simplemente replicam trechos de normativos, sem haver posicionamento claro sobre o assunto. Se a questão se referir, por exemplo, a Doenças e Lesões Preexistentes, pode contar que na resposta haverá recortes das normas sobre o assunto.

Quem espera uma resposta assertiva, decisiva, vai se decepcionar.

Não poderia ser diferente, não está dentre as atribuições da ANS ser a tutora dos beneficiários. Por outro lado, não poderia ser mais diferente da afirmação de seu presidente, 
Nosso trabalho é defender o beneficiário

Paulo Rebello, O Estado de São Paulo, 13/06/2022

Outras entidades se ocupam dessa defesa. Sem o profundo conhecimento da norma infralegal, é verdade. Exemplo dessa atenção com o beneficiário / consumidor são o IDEC e o sistema PROCON.

Enquanto isso, A ANS age, baseada em quantidade de reclamações e constatações, contra as operadoras mais reclamadas/autuadas, chegando mesmo a liquidá-las quando entende que a situação é insustentável, baseada nas leis e normativos inerentes. 

Justiça seja feita: quando a ANS age no caso individual, a operadora recebe uma NIP (Notificação de Intermediação Premilinar, previsto na RN 483/2022) que normalmente provoca uma reação imediata, muitas vezes solucionando a demanda do beneficiário. 


A lei 9.656 já tem 24 anos (praticamente). Algumas de suas premissas precisam de revisão, principalmente no que se refere à diminuição dos contrato individuais e familiares. Depois desse tempo, outras necessidades surgiram e outros fatos se impuseram. Cabe ao poder legislativo, na melhor aplicação da Teoria Tridimensional do Direito, aperfeiçoar uma lei que foi tão bem acolhida pela sociedade.  

Foto da capa: Fonte: Pixabay.

22 março 2022

Redução do TME e TMA - Bastidores


O gestor de uma operadora entrou em contato com algumas questões sobre o case da diminuição do TME e do TMA (deste link). Achamos oportuno descrever alguns fatos do desenvolvimento do processo.

O início da consultoria


No início, fomos chamados para desenvolver uma forma de estimar a necessidade de novos P.A. Como toda consultoria que se preza, procuramos conhecer mais a fundo a situação-problema, para que a ação fosse a mais adequada.

A operadora não utilizava nenhuma forma de mensuração de eventos. Ou seja, o aumento da quantidade de P.A. baseava-se na única informação que tinham: a quantidade era insuficiente.

Nossas ações se centraram, então, em levantar dados para conhecer melhor a situação. Os dados foram obtidos do sistema de telefonia (TME - tempo médio de espera) e do sistema de gestão (TMA - tempo médio de atendimento).

A seguir, no sistema de gestão da operadora, identificamos para cada atendimento as funcionalidades acessadas, o que permitiu identificar os tipos de demandas e o tempo médio de atendimento. 

O levantamento dos processos


Ao acompanhar os atendentes, identificamos uma grande variabilidade na forma de resolução para questões semelhantes, o que evidenciava falta de modelagem no processo. Ao reunir a equipe para discutir essas questões,  notamos que todos acreditavam seguir uma diretriz única. 

Dessas discussões, devidamente chanceladas pela administração da operadoras, foram deduzidos os processos a serem implementados.

Também nessa reunião foram identificados pontos de Não Aderência do software de gestão às necessidades dos processos. Não era o caso de mudança de processos, era pura e simples falta de informação.

O software


A operadora preferiu não solicitar mudanças no software, devido à política de customização adotada pelo fornecedor. Em vez disso, foram construídos atalhos e integrações para que as informações essenciais à elucidação da demanda fossem obtidas.

Como de hábito, várias outras Não Conformidades foram apresentadas pela equipe do cliente, evidenciando o afastamento do software dos processos de trabalho. Não entramos no mérito de todas as questões, mas uma análise maior se mostrou necessária.

A administração da operadora manifestou descontentamento com o software, mas avalia que sua troca acarretaria mais problemas do que os observados atualmente.

A resistência às mudanças


No processo de modelagem do processo TO-BE (a forma ideal de abordar a demanda), a equipe participou ativamente e foi graças às suas informações que o redesenho foi efetuado.

Considerando-se que o novo processo nasceu de uma discussão franca e aberta entre os envolvidos, não houve resistência às mudanças propostas, já que eram um consenso. Desta forma, não houve necessidade de ações adicionais de engajamento, o que foi um grande facilitador no processo.

A necessidade de medições


A operadora não tinha indicadores definidos para seus processos de trabalho. Mas em uma das suas diretrizes estratégicas constava a "necessidade de garantir a satisfação do beneficiário". Como a satisfação envolve esse item básico que é o atendimento telefônico, entendeu-se que há necessidade de medição de vários outros processos operacionais para o atingimento da meta.

Foi utilizada uma ferramenta BAM (business activity monitoring) para a medição do TME, TMA e taxa de perda, de forma a demonstrar, em painéis dinâmicos, a situação minuto a minuto. Dessa forma, há a possibilidade de adoção de ações imediatas sempre que os SLAs (níveis de serviço acordados) saíssem das curvas consideradas desejáveis.

Com a ferramenta em uso, outros indicadores estão sendo adotados pela operadora e estão sendo adicionados aos painéis de gestão.

As novas metas


Os atendimentos telefônicos são dependentes de diversos fatores que devem ser considerados na mensuração do tempo ideal de execução. Itens como idade, condição de saúde, facilidade de expressão, etc. devem ser considerados. Por esse motivo, a meta não se definiu como um número determinado, mas um intervalo, com uma variabilidade razoável obtida na base de atendimentos anteriores.

Como, entretanto, o histórico não foi estabelecido de uma forma planejada e exata, mas inferida a partir dos dados disponíveis, a meta será considerada um referencial até que seja realizada sua primeira revisão, quando então será oficializada como meta da empresa. 

Conclusão

Foi um processo que durou algumas semanas, principalmente as adptações de software. A maior dificuldade foi a falta de política de gestão por indicadores, que gerou a necessidade de inferências a partis dos dados disponíveis. Por outro lado, a participação da equipe operacional foi determinante para o bom resultado alcançado. A temida "resistência às mudanças" foi evitada graças a essa participação.

O software de gestão, ao ser implantado e estabilizado tem a tendência de apresentar ganhos operacionais consideráveis. Depois de um certo tempo, entretanto, ele passa a ser parte do problema, quando não acompanha as mudanças naturais do processo.





17 março 2022

Reduzindo tempo de espera (TME) e tempo de atendimento (TMA) - Operadora de planos de saúde


Situação problema


A operadora de planos de saúde recebia muitas reclamações de demora no atendimento telefônico, afetando negativamente sua imagem.

A solução que imediatamente se apresentou foi o aumento das posições de atendimento. A operadora hesitou, porque o investimento era considerável.

Análise situacional


Recuperamos e avaliamos os dados das ligações recebidas e atendidas, e agrupamos as ligações de acordo com suas características.

Foram identificados seis tipos de ligações que mais demandavam tempo de atendimento (Pareto). Entre ligações com mesmas características, havia uma razoável disparidade do tempo de atendimento, evidenciando uma provável falta de padronização nos processos.

Os atendimentos referentes a esses tipos de ligações foram acompanhados presencialmente, com anotações sobre o processo utilizado para elaborar as respostas. 

Alguns achados do acompanhamento:
  • Alguns processos não estavam modelados, o que obrigava os atendentes a elaborarem suas respostas de acordo com seu conhecimento pessoal sobre o tema;
  • Nem todos os atendentes sabiam como responder a essas questões mais frequentes. A necessidade de consultar outras pessoas aumentava o tempo de atendimento (TMA), que se refletia na tempo de espera (TME) das demais chamadas;
  • A resposta em algumas circunstâncias dependia de consulta a dados não existentes nas telas dos atendentes, obrigando-os a pesquisas fora da tela principal de trabalho. Novamente, nem todos sabiam onde localizar as informações necessárias;
  • Não existia política de troca de informações entre os atendentes, compartimentando a experiência adquirida.

Ações adotadas

Com base nos achados da observação in loco, foram implementadas as seguintes medidas;
  • Os processos foram modelados, resultando em scripts com instruções detalhadas visando a resolução da demanda do cliente;
  • Foi estabelecido um forum de discussões entre os atendentes, com o objetivo de compartilhar conhecimentos, avaliar e evoluir os processos modelados, visando sempre os eventos de maior ocorrência;
  • Várias telas de atendimento foram alteradas, de forma a incluir informações e/ou links que ajudassem a solucionar a questão;
  • Foi estabelecido um programa de treinamento, com periodicidade trimestral, para capacitar e reciclar os envolvidos no atendimento; o treinamento passou a ser obrigatório para novos atendentes;
  • Foram criados painéis de acompanhamento online sobre o TME (tempo médio de espera), o TMA (tempo médio de atendimento) e o ranking das ligações recebidas, por tipo e por TMA, para que as equipes internas pudessem atuar nos casos acima da curva esperada, estabelecendo um ciclo PDCA.

Resultados

Como resultados práticos, o tempo demandado pelos tipos de ligações sofreu forte redução, gerando, no geral, queda de 30% no TMA da operadora. O TME também se beneficiou das ações, com redução de 18%. 

Espera-se que o ciclo PDCA iniciado com a consultoria produza, em curto espaço de tempo, outras reduções na demanda de tempo dos atendentes da operadora. O aumento na quantidade de PAs foi descartado no momento.


 

08 março 2022

CASE - Gerenciando custo x benefício de atividade - Saúde Suplementar


O desafio

A operadora de planos de saúde tinha problemas operacionais recorrentes no seu setor de cotas médicas, além de alta demanda por decisões gerenciais e altos custos relacionados à mão de obra (excesso de trabalho e horas extras).  Como o problema era recorrente e os custos sempre crescentes, o objetivo do trabalho era identificar pontos de melhoria para diminuir custos, diminuir o tempo de execução das atividades e distribuir melhor a carga de trabalho.

Uma das premissas da operadora era a de que todas as contas médicas deveriam ser analisadas para identificar se havia cobrança indevida por parte dos prestadores de serviços médico-hospilatares. Essa premissa partiu da alta direção da empresa e foi rapidamente incorporada pelos gestores de nível médio e profisionais operacionais.

Como a carga de trabalho não é desse tipo de atividade não é passível de mensuração exata, o acompanhamento da execução das atividades se dava por estimativas semanais, alocando e/ou desalocando-se horas extras conforme a necessidade percebida. 

Consequências:


Cansaço: Com o passar do tempo, a equipe começou a se sentir sobrecarregada, principalmente pelas horas extras em finais de semana, tendo início uma sequência de manifestações de cansaço;

Produtividade: houve queda de produtividade, conforme percepção dos gestores. Não era utilizada nenhuma métrica e/ou indicador para embasar essa avaliação; 

Custos: com a produtividade mais baixa, houve aumento na necessidade de horas extras, o que retroalimentou o problema, causando cansaço ainda maior na equipe;

Fato

Nos meses avaliados, o valor das glosas aplicados pela equipe manteve-se dentro de um padrão previsível de comportamento. Ou seja, o aumento da carga de trabalho não acarretava aumento de glosas

Análise do cenário

A equipe de consultoria analisou os números relacionados ao processamento das contas médicas. 

As conclusões foram as seguintes:
  • Identificou-se uma tendência de aumento na quantidade de itens por avaliar nas contas médicas, compatível com o aumento de demanda da equipe;
  • As valores proporcionais de glosas não tiveram variação significativa nesse período;
  • Não houve aumento na glosa proporcional de nenhum prestador;
  • Nenhum analista apresentou variação no padrão de glosas realizadas;
  • A grande maioria dos eventos analisados não apresentou aumento significativo nos valores glosados.
Tamanho da equipe: a equipe se manteve no mesmo tamanho basicamente por todo o período analisado; quando houve necessidade (percebida) funcionários de outros setores eran deslocados para fazer frente à demanda. 

Horas extras: as horas extras estavam em viés de alta, seja em quantidade, seja em valor.

Custo da atividade de análise de contas médicas: apurou-se que o custo das atividades (somente considerando-se mão de obra) correspondia a quase seis vezes o valor glosado mensalmente pela equipe. 

Ponto discutido com a alta direção

Motivo da premissa de conferir todos os eventos da conta médica: receio de que uma cobrança indevida não fosse identificada.

A diretriz de conferência da totalidade dos itens em pagamento foi dada como uma salvaguarda, no sentido de garantir aos stakeholders o justo pagamento pelos serviços e nada mais. No momento em que essa diretriz foi emitida, não houve preocupação com custos da atividade de conferência / controle, e nem com as consequências indiretas que dali advêm. 

A direção da empresa se surpreendeu com a relação custo X benefício das atividades.

Ações adotadas:

Com o objetivo de adequar o custo das atividades com benefícios concretos trazidos pela identificação de cobrança indevida, foram feitas as seguintes sugestões:
  • Estabelecer regras de conformidade para contas de pequena monta, de forma que, na entrada, já fossem consideradas analisadas e homologadas pelo sistema de gestão da operadora (vide regra-carrosel, abaixo);
  • Definir os tipos de contas que seriam necessariamente analisadas nos seus principais componentes (procedimentos e insumos de maior custo);
  • Definir classificação de prestadores com margem de confiabilidade, a fim de aplicar níveis diferentes de profundidade de análise de acordo com essa classificação;
  • Analisar os parâmetros do software de gestão, com o objetivo de aprimorar as críticas de sistema (glosas automáticas);
  • Da mesma forma, identificar se os parâmetros atuais impactam positivamente ou não na análise da conta médica (por exemplo, uma glosa automática frequentemente revertida é um impacto negativo no processo produtivo;
  • Definir o uma regra-carrossel: um determinado percentual de contas, de acordo com o risco apresentado, seria aleatoriamente selecionado para que fosse feita análise integral dos seus componentes, independente de tipo de conta ou prestador envolvidos. Esse percentual poderia ser ajustado de acordo com o volume de trabalho do mês;
  • Alguns processos foram redistribuidos de acordo com a função do analista, maximizando a utilização das expertises inerentes a cada posto de trabalho.

Resultados esperados

Com eliminação da premissa de conferência de todo o movimento, e a adoção de algumas medidas, já nos primeiros meses experimentou-se a queda da necessidade de horas extras. Outras medidas que exigem análise mais detalhada (tipos de contas a serem sempre consideradas homologadas pelo sistema, poe exemplo) encontram-se em fase de implementação e a meta pós implementação é a redução da demanda de análise à metade do que era antes da ação consultiva. 

Houve a sensibilização da operadora de que o custo do controle não pode ser maior que os benefícios  gerados, por isso a atividade continuará se desenvolvendo ad continuum, até que a meta seja atingida.

O projeto encontra-se en fase de execução pela operadora, tendo sido constituído um comite de avaliação para (re)direcionar as atividades sempre que necessário.









 

22 fevereiro 2022

Processos, gestão de riscos e controles - A RN 443 na prática


As operadoras de planos de saúde estarão obrigadas, a depender de sua modalidade e tamanho, a apresentar abordagem de gestão de riscos e governança corporativa, previstos na Resolução Normativa 443, da Agência Nacional de Saúde Suplementar. Seguindo uma tendência mundial, a norma estabelece processos mínimos de governança, gestão de riscos e controles internos e ampla divulgação aos skateholders.

Cada risco decorre de um ou mais processos; portanto, a estes deve ser dada atenção especial. Mas no dia a dia das empresas é isso que acontece?

Em levantamento nosso em uma operadora identificou que os gestores consideravam que 30% de seu tempo eram destinados a resolução de problemas operacionais, que limitavam a velocidade de evolução do processo ou mesmo a impedia. Como resultado, o produto final não era entregue enquanto não solucionado o problema. Em graus de impacto variados, essas Não Conformidades dependiam de ações diretas e indiretas para sua resolução, na maioria das vezes envolvendo algum software próprio ou de terceiros.  E, também na maioria das vezes, era problemas operacionais que se repetiam ao longo do tempo, oferecendo a conclusão de que as ações se centravam nas consequências e raramente nas causas. 

Uma vez que 30% do tempo era destinado ao enfrentamento das consequências dos problemas, é lícito dizer que 30% do salário era desperdiçado com ações importantes, necessárias, mas evitáveis. Isso mesmo. Com a devida atenção às causas, o problema pode ser evitado ou ter suas consequências mitigadas a uma margem de tolerância aceitável.

Tal quantidade de problemas operacionais também indica que os controles necessários à sua pronta identificação inexistem, o que dá azo a uma importante faceta: a das fraudes organizacionais. A conclusão se baseia no fato de que, com controles ínfimos para resolver problemas de impacto no processo produtivo, também são insuficientes para evitar fraudes financeiras.

É sempre bom ter em mente que o SOX Act americano, decorrente da necessidade de garantir aos investidores que práticas de governança eram adotadas nas empresas, teve como base os grandes escândalos financeiros da ENROM e da Worldcom.

A prática brasileira ainda não atingiu esse nível de paranóia, infelizmente. A cultura organizacional presente não oferece apoio a preocupações desse tipo, considerando que ainda foca em outros problemas tidos como mais importantes.

E, na prática, há fatores culturais que concorrem para que a simples aplicação do PDCA de Deming não seja regra nas empresas:
  • Carga de trabalho dos gestores e Key-users. Gestores e key users são os principais responsáveis, pelo seu amplo conhecimento do processo, por revisá-lo e mantê-lo fidedigno aos seus objetivos, com segurança, eficiência e eficácia. Com o tempo comprometido pro problemas recorrentes de um lado, reuniões improdutivas (no sentido de resultados práticos) e mais as atribuições das funções, sobra pouco tempo, se sobra, para planejamento e ações estratégicas. Assim, não parece distante da realidade dizer que atuam mais sobre os incêndios já instalados do que em ações preventivas;
  • Falta de Cultura de solução de problemas. Gestores e key users não são estimulados a enfrentar as causas dos problemas, pode diversos motivos. A situação mais grave se assemelha ao contido no texto O que fazer com os Igníferos, em que tantas soluções adicionais são adotadas que torna-se difícil separar causa de consequência;
  • Problemas com o fornecedor de sistemas.   Quando o assunto envolve software, a solução normalmente esbarra no custo da alteração necessária. Fornecedores que vendem horas de programação já estão entrando em declínio, enquanto os que entregam soluções estão em alta. Ou deveriam estar. O fato é que a customização tem um custo que não tem parâmetro do comparação para fazer um cálculo de ROI. Poucas empresas sabem estimar o custo do problema, e para essas mesmas empresas, todo custo é despesa. Empresas de maior visão dimensionam financeiramente seus problemas e pesam o retorno que a solução traria, na hora de decidir pela adoção. Isso deve se somar a uma deficiência do fornecedor, que deveria, à vista desse problema, comprovar que sua solução traz, de fato, retorno.
  • Problemas com a modelagem de processos. Outra solução alternativa à mudança do software é a alteração do processo. Embora seja mais fácil em tese, essa é a que mais encontra resistência nas empresas, por uma característica humana: a resistência às mudanças. Por causa dessa resistência natural, as análises dos processos são, na maioria das vezes, contaminadas por componentes subjetivos, fazendo com que o foco esteja sempre longe do processo.
O fato é que essas características se reproduzem em questões estratégicas, que ficam à mercê das soluções emergenciais sempre que um risco se concretiza.

O grande benefício trazido pela norma é a instituição de mentalidade de gestão de risco, a da procura das causas, a de mitigação de consequências, num ambiente em que esses componentes inexistem ou existem em pequena monta.

Em passado recentíssimo, testemunhamos grandes operadoras sendo liquidadas pela ANS por problemas decorrentes de má gestão.  A alguns, essa liquidação pegou de surpresa. A outros, era esperada. Mas atingiu igualmente diretores, funcionários, beneficiários, prestadores de serviços...

Não se trata de fazer do limão uma limonada. A adesão total ao espírito da norma, qual seja a de trazer transparência aos dados da empresa e às ações para garantir a manutenção de boas condições de gestão, seria o grande benefício alcançado. 

Não há dúvidas de que empresas bem intencionadas e bem geridas só têm a ganhar com a gestão de riscos e implementação de controles internos.