10 janeiro 2024

Saúde suplementar em 2024 - o que esperar?


O ano de 2023 foi um ano estéril de grandes acontecimentos na saúde suplementar do Brasil.

Foi o ano em que os movimentos contra as fraudes cresceram muito, mobilizando importantes empresas da área. Fraudes são crimes, importante lembrar. Mas é importante também lembrar que (conforme assinalou o IDEC) muitas vezes o consumidor não sabe que ela está sendo perpetrada pelo prestador de serviços. Isso devidamente registrado, é importante constar que, outras tantas vezes, o beneficiário sabe.

Mas vir a público apresentar o processo como se fosse a grande mazela da área é um certo exagero. É responsabilidade das operadoras de planos de saúde identificar se o reembolso é realmente devido, e a grande incidência mostra a fragilidade dos controles dentro da operadora. Algumas, mais práticas, trataram de identificar, via pesquisa nos dados, quem são os prestadores que mais geram os recibos e, através desses, identificar o beneficiário (vítima ou conivente, não importa).

Para encerrar esse tópico, há estimativas da grandeza de bilhões de reais relacionadas a essas fraudes. O que não deixa de ser curioso, pois se nem todas são identificadas, trata-se somente disso: uma estimativa, com grande chance de estar superdimensionada.

Outro assunto em voga foi a dificuldade econômica das operadoras (grandes e pequenas), cujas causas foram vinculadas à demanda reprimida, fraudes, inflação médica, etc.

Mas o assunto que atravessou o ano de 2023 para 2024 foi a venda da Amil. De grande negócio nacional, transformou-se num grande incômodo para a empresa americana que a adquiriu há alguns anos. A julgar pela quantidade de interessados, parece válido concluir que o negócio não deve ser assim tão ruim.

O fato é que é o fim de uma era. A Amil adquiriu, em 2007, A Blue Life, tradicional operadora tradicional paulistana. Depois, numa jogada arrojada, adquriu o controle da Medial Saúde, uma gigante paulistana. Uma série de fusões como essas lançou a Amil um patamar diferenciado, com um sucesso explicado em parte pela verticalização da operação. Pergunta-se em 2024: qual será o futuro da Amil sob o comando de José Seripieri? Pelo bem da saúde suplementar no Brasil, espera-se que seja um estrondoso sucesso.

O grande ausente em 2023 deve continuar ausente em 2024: a extinção das operadoras, causada pelo meteoro do fim do caráter terminativo do rol de procedimentos (Lei 14.454, de 09/2022). Os custos não explodiram, o apocalipse não chegou. Nem mesmo uma gota de chuva ou labareda do fogo dos infernos foi visto. Houve, claro, um aumento causado pela incorporação de medicamentos e terapias ao Rol. Mas não extingiu em massa as operadoras.

Em 2024, pode-se esperar o que se viu nos anos anteriores. Processos mal modelados nas operadoras, prazos máximos sendo esgarçados, beneficiário sem informação... Mais do mesmo que há 24 anos se vê no mercado.

o setor deveria se inspirar no modelo das Fintechs, que resolveram acabar com a estrutura mastodôntica dos grandes bancos. Inspirar-se, bem entendido, não copiar. Porque, mais do que tratar de recursos monetários, a área trata da saúde e, não raramente (ao contrário), de vidas.

As tecnologias deverão ser aplicadas de uma frma mais produtiva e assertiva. É necessária uma revolução que permita grandes ganhos de escala na operação administrativa da operadora, assim entendida aquela encarregada de emitir boletos de cobrança, emitir guias de autorização, receber e pagar contas médicas. Já no segmento assistencial, maior revolução é mais urgente. O atendimento assistencial precisa ser balizado por conhecimento embarcado em tecnologias já presentes, sejam em APPs de celular ou em software de computadores, ou mesmo presentes nos equipamentos de diagnóstico. 

É necessário diminuir os ciclos de execução dos processos (administrativos ou assistenciais), aumentar a eficência dos resultados (nas autorizações e execução de procedimentos), e direcionar a mão de obra para atendimento (humano) de fato.

É o que se pode esperar, mas dificilmente é o que será visto. Ao menos, não no atacado.  

14 setembro 2023

Eu sei, mas não devia. Marina Colasanti


Eu sei que a gente se acostuma. Mas não devia.

A gente se acostuma a morar em apartamentos de fundos e a não ter outra vista que não as janelas ao redor. E, porque não tem vista, logo se acostuma a não olhar para fora. E, porque não olha para fora, logo se acostuma a não abrir de todo as cortinas. E, porque não abre as cortinas, logo se acostuma a acender mais cedo a luz. E, à medida que se acostuma, esquece o sol, esquece o ar, esquece a amplidão.

A gente se acostuma a acordar de manhã sobressaltado porque está na hora. A tomar o café correndo porque está atrasado. A ler o jornal no ônibus porque não pode perder o tempo da viagem. A comer sanduíche porque não dá para almoçar. A sair do trabalho porque já é noite. A cochilar no ônibus porque está cansado. A deitar cedo e dormir pesado sem ter vivido o dia.

A gente se acostuma a abrir o jornal e a ler sobre a guerra. E, aceitando a guerra, aceita os mortos e que haja números para os mortos. E, aceitando os números, aceita não acreditar nas negociações de paz. E, não acreditando nas negociações de paz, aceita ler todo dia da guerra, dos números, da longa duração.

A gente se acostuma a esperar o dia inteiro e ouvir no telefone: hoje não posso ir. A sorrir para as pessoas sem receber um sorriso de volta. A ser ignorado quando precisava tanto ser visto.

A gente se acostuma a pagar por tudo o que deseja e o de que necessita. E a lutar para ganhar o dinheiro com que pagar. E a ganhar menos do que precisa. E a fazer fila para pagar. E a pagar mais do que as coisas valem. E a saber que cada vez pagar mais. E a procurar mais trabalho, para ganhar mais dinheiro, para ter com que pagar nas filas em que se cobra.

A gente se acostuma a andar na rua e ver cartazes. A abrir as revistas e ver anúncios. A ligar a televisão e assistir a comerciais. A ir ao cinema e engolir publicidade. A ser instigado, conduzido, desnorteado, lançado na infindável catarata dos produtos.

A gente se acostuma à poluição. Às salas fechadas de ar condicionado e cheiro de cigarro. À luz artificial de ligeiro tremor. Ao choque que os olhos levam na luz natural. Às bactérias da água potável. À contaminação da água do mar. À lenta morte dos rios. Se acostuma a não ouvir passarinho, a não ter galo de madrugada, a temer a hidrofobia dos cães, a não colher fruta no pé, a não ter sequer uma planta.

A gente se acostuma a coisas demais, para não sofrer. Em doses pequenas, tentando não perceber, vai afastando uma dor aqui, um ressentimento ali, uma revolta acolá. Se o cinema está cheio, a gente senta na primeira fila e torce um pouco o pescoço. Se a praia está contaminada, a gente molha só os pés e sua no resto do corpo. Se o trabalho está duro, a gente se consola pensando no fim de semana. E se no fim de semana não há muito o que fazer a gente vai dormir cedo e ainda fica satisfeito porque tem sempre sono atrasado.

A gente se acostuma para não se ralar na aspereza, para preservar a pele. Se acostuma para evitar feridas, sangramentos, para esquivar-se de faca e baioneta, para poupar o peito. A gente se acostuma para poupar a vida. Que aos poucos se gasta, e que, gasta de tanto acostumar, se perde de si mesma.


Marina Colasanti

01 junho 2023

Unimed Taubaté, IDSS e indicadores de saúde


O ANS decretou, pela Resolução Operacional 2813, de 26/05/2023, a "concessão da portabilidade especial de carências aos beneficiários" da Unimed Taubaté, o que equivale dizer que promoveu a liquidação da operadora. Os motivos, segundo aquela RO são "anormalidades econômico-financeiras e administrativas graves que colocam em risco a continuidade do atendimento à saúde". 

Uma análise rápida aos números da operadora mostram os seguintes indicadores:




Outra consulta rápida à ANS nos informa que a operadora não teve seu IDSS - Índice de Desempenho em Saúde Suplementar calculado no último período considerado pela agência, talvez prenunciando problemas.

A operadora, qualquer que seja seu tamanho, deve buscar, de forma obsessiva, a higidez de seus resultados, ou seja, deve buscar lucro. Uma boa indicação se esse lucro vem ou não é no índice de sinistralidade que, no caso da Unimed Taubaté, se mostrou bem alto em 2021 e 2022. Esse número, conjugado com o percentual das despesas administrativas, é determinante para o resultado final e, como se vê, para a sobrevivência da operadora.

O IDSS é um grande avanço promovido pela ANS. Seus pilares - Qualidade de Atenção à Saúde, Garantia de Acesso, Sustentabilidade no Mercado e Gestão de Processos e Regulação tratam de informar e instrumentalizar as análises de desempenho que, a partir do momento da análise, podem ser consideradas preditivas para ações corretivas. A falta dessa informação na referida operadora é um sintoma da existência de problemas.

Finalmente, há que se ter em mente que ou a situação dos números agravou-se de forma tal que a agência se viu obrigada a tomar a medida, ou ela é consequência de reclamações dos beneficiários. De qualquer forma, o que se vê é não basta ter gestão e domínio de números. É necessário aliar tecnologia, expertise e inovação para que o negócio continue saudável.  

13 março 2023

A Sìndrome do Sapo Fervido OU Porque os Problemas Crescem Até Saírem do Controle

É bem conhecida a síndrome do sapo fervido. Mas vamos lembrar: dizem que se um sapo for colocado numa panela com água aquecida, ele imediatamente salta para fora. Mas se ele for colocado numa panela com água fria e esta se aquecer aos poucos, a água chegará à fervura e matará o sapo sem que o sapo esboce reação.

Claro que é só uma alegoria, como a Caverna de Platão. Mas ela é ilustrativa dos motivos pelos quais os problemas, numa empresa, crescem até saírem do controle, chegando mesmo a configurar emergências (veja A Matriz de Eisenhower). Isso decorre, na grande maioria das vezes, da falta de medidas para gerenciar processos e, obviamente, da falta de correções de rumo.

No ambiente de altas volatilidades em que vivemos (normativa, legal, política, climática. segurança, etc.) empresas passam por grandes testes de seus pilares administrativos, relacionados, basicamente, a custos e receitas.

No quesito receitas, a resposta é quase que um padrão: aumentar as vendas, a qualquer custo. Já reside aí um problema, pois o custo total da venda não pode ser maior do que a receita por ela aferida. É a falta de controle a que nos referimos.

Na questão das despesas, há departamentos de empresas que entram e saem de crises fazendo as coisas exatamente do mesmo jeito. Ou, muito pior, agregando passos e tarefas para evitar situações indesejadas experimentadas durante as crises.

Num exemplo banal, há aquela empresa que certa vez teve uma dificuldade qualquer com a identificação de um cliente, o que gerou alguns problemas. Desde então, essa empresa, em qualquer atendimento, não somente exige o documento de identidade como o reproduz em xerocópia e o arquiva em suas dependências. Não é preciso dizer que os custos de cópias aumentaram, a necessidade de manutenção das máquinas copiadoras aumentou e, lamentavelmente, aumentou o tempo de atendimento ao cliente. Que, por sua vez, aumentou o tempo de espera por atendimento Que, por sua vez... 

Há uma certa tendência de não avaliar/reavaliar processos que não estejam dando problemas. A pergunta é: se não está dando problema, por que mexer?

Simples, muito simples!

Porque os processos são grandes ralos de tempo, o que é um custo em qualquer empresa. Processos estão afeitos à teoria da entropia, acumulando desperdícios por onde é encontrada. Dessa forma, aquele passo de "fotocopiar a identidade do cliente" se soma a outros tantos até que os custos de execução de uma dada atividade extrapolam os limites do razoável. E os envolvidos no processo, sequestrados pela Síndrome do Sapo Fervido, sequer se dão conta do tamanho do monstro que foi criado.

Embora todos sejam responsáveis, na abordagem de gestão de processos, pelo seu sucesso, especial carga deve ser atribuída ao gestor / gerente / líder. A este cabe exercer, em prol da sua equipe e da empresa, a dúvida sistemática socrática, procurando averiguar se todos os pressupostos da realização da atividade ainda se encontram válidos, agindo em casos de necessidade.

Mais fácil falar do que fazer?

Gestores hoje estão envolvidos em grandes urgências do dia a dia e, decorrência delas, de reuniões executivas e operacionais. Enquanto se combate o fogo na floresta, ninguém busca suas origens para evitar sua deflagração.

A abordagem de processos, antigamente baseada na reducionista arte da Organização & Métodos, ainda é um processo válido, desde que utilizado com isenção. Criticar o que está inadequado, priorizar o que agrega valor.

No caso das fotocópias, falta alguém perguntar, em alto e bom som: - O que estamos ganhando com isso (o processo)? E, na esteira da primeira pergunta: -- O custo compensa o benefício obtido?

Em um caso real, foi identificada que uma determinada ação (pretensamente mitigatória de perdas) custava, em média, quase dez vezes o valor que se alegava economizar. Ficaria o empresário satisfeito com essa situação?

A grande barreira para combater desperdícios desse tipo é que os custos decorrentes ou são invisíveis, ou são mascarados sob outras rubricas de despesas. Por exemplo, a quantidade adicional de funcionários para atender o cliente da fotocópia se esconde atrás da rubrica "mão de obra". O alto custo de manutenção das copiadoras é considerado como escolha indevida da máquina de cópia ou do parceiro de assistência técnica. Despesas de manutenção, portanto. 

E assim a água vai esquentando até que a fervura chegue. Essa fervura pode chegar em forma de redução de pessoal e, neste caso, o jeito vai ser fazer o que for possível com a mão de obra disponível (diminuída). Ou seja, com perda de qualidade.

Ainda bem que é só uma alegoria essa história do sapo...

06 março 2023

Evolução do enfoque da saúde suplementar - Visão das operadoras

Nos primórdios da Saúde Suplementar, as Operadoras de Planos de Saúde (OPS), ainda sob o impacto da nova regulação, procuraram formas de garantir ou otimizar o faturamento. Por isso, os primeiros modelos de sistemas idealizados tinham fortes funções administrativas, com pouco ou quase nada de assistencial.

As forças requeridas no software eram o cadastro e faturamento, conciliação com bancos e sistemas financeiros integrados. Era uma visão reducionista da complexidade do setor, mas que num primeiro momento foi fortalecida pela exiguidade de prazo para o funcionamento das novas regras.

Cedo as OPS se depararam com a necessidade de controlar os procedimentos solicitados e pagos, à frente das regras de cobertura, e o software se incorpou. Note-se que foram adicionadas mais regras administrativas, conquanto faziam a conciliação entre utilização e cobertura.

As regras de negócio continuaram evoluindo, criando-se o enfoque da análise de elegibilidade, baseada em três pilares: beneficiário, procedimento, prestador. Os sistemas foram especializados em analisar os pedidos de autorização ou pagamento de acordo com condições objetivas de prazos intervalares, gênero (beneficiário), contratação (prestador), regras técnicas de realização em função de condições objetivas (procedimentos). Registre-se, novamente, que estas regras são eminentemente administrativas, mesmo as técnicas citadas, pois tratam de condições de realização dos procedimentos.

Os softwares foram incorporando essas regras, que oferecem à OPS instrumentos para negar autorização para realização do procedimento ou glosar contas em desacordo.

Nas ações de auditoria, sejam de campo, sejam nas contas médicas apresentadas, essas regras ou funcionam para glosar as contas diretamente pelo sistema, ou são aplicadas de forma manual por profissionais de auditoria, baseados em experiência e conhecimentos práticos do auditor.

É forçoso destacar, mais uma vez, que essas ações todas, empreendidas por quase a totalidade das OPS no Brasil, são medidas administrativas (embora algumas envolvam médicos), visando a contenção do sinistro. Por essa abrangência, pode-se dizer que os softwares existentes no mercado adotam (alguns com grande eficiência e eficácia) medidas administrativas no seu dia-dia, praticamente limitando-se a isso. Experiências ditas inovadoras, entretanto, objetivam a mesma filosofia de regulação: diminuir a autorização e aumentar a glosa.

O que se deve esperar da tecnologia, então?


Poucas OPS se ocupam de manter o cidadão saudável. E aquelas que o fazem, não têm suporte tecnológico para tal. Pelo menos não no nível de especialização a que foi o software regulador. As negociações com os prestadores se focam na medicina curativa, procurando diminuir seu custo. Pouca ênfase de sucesso em ações preventivas eficazes e capazes de engajar o beneficiário. Muito disso, é verdade, dependeria da adesão do beneficiário, que tem se mostrado avesso a esse tipo de cuidado mais rigoroso.

Ações da ANS voltadas para prevenção e mesmo métodos alternativos de pagamento que promovam melhora na qualidade de vida do beneficiário ainda são iniciativas, por vezes heroicas, mas que raramente caem no mainstream das OPS.

Startups que atuam em nichos específicos tiveram grande expansão nos últimos anos, mas poderiam ser muito melhor aproveitadas se sua abordagem fosse holística em relação ao beneficiário. Imagine, por exemplo, um excelente APP de saúde mental convivendo com uma carga de sinistros alta decorrente de muitos portadores de doenças cardíacas. 

De mais a mais, o que rege e sempre regerá esse mercado é o dinheiro. A tecnologia tem de apresentar retorno, e um cuja estimativa seja crível. Um argumento da melhoria da qualidade de vida de um indíviduo não comove os decisores nesse mercado de risco financeiro tão grande.

Dessa forma, o próximo estágio da tecnologia é o da abordagem assistencial. Aquilo que há muito se promete, mas que não ganha tração. É a identificação, ou mesmo predição, daqueles portadores de morbidade; a adoção de melhores abordagens terapêuticas; adoção das melhores práticas de recuperação. O software da próxima geração deve interligar médicos pagos para manter a saúde dos ainda-nem--pacientes. E deve pagar para que os pacientes sejam seduzidos a não permitirem que sua doença se agrave novamente.

Quando a tecnologia atingir esse estágio, desde que as OPS estejam alinhadas, o foco da geração de custo da Saúde Suplementar se desviará da medicina curativa para a medicina preventiva. E todos sabemos que a prevenção custa menos do que a remediação (desculpando-me pelo pobre trocadilho...).