14 setembro 2023

Eu sei, mas não devia. Marina Colasanti


Eu sei que a gente se acostuma. Mas não devia.

A gente se acostuma a morar em apartamentos de fundos e a não ter outra vista que não as janelas ao redor. E, porque não tem vista, logo se acostuma a não olhar para fora. E, porque não olha para fora, logo se acostuma a não abrir de todo as cortinas. E, porque não abre as cortinas, logo se acostuma a acender mais cedo a luz. E, à medida que se acostuma, esquece o sol, esquece o ar, esquece a amplidão.

A gente se acostuma a acordar de manhã sobressaltado porque está na hora. A tomar o café correndo porque está atrasado. A ler o jornal no ônibus porque não pode perder o tempo da viagem. A comer sanduíche porque não dá para almoçar. A sair do trabalho porque já é noite. A cochilar no ônibus porque está cansado. A deitar cedo e dormir pesado sem ter vivido o dia.

A gente se acostuma a abrir o jornal e a ler sobre a guerra. E, aceitando a guerra, aceita os mortos e que haja números para os mortos. E, aceitando os números, aceita não acreditar nas negociações de paz. E, não acreditando nas negociações de paz, aceita ler todo dia da guerra, dos números, da longa duração.

A gente se acostuma a esperar o dia inteiro e ouvir no telefone: hoje não posso ir. A sorrir para as pessoas sem receber um sorriso de volta. A ser ignorado quando precisava tanto ser visto.

A gente se acostuma a pagar por tudo o que deseja e o de que necessita. E a lutar para ganhar o dinheiro com que pagar. E a ganhar menos do que precisa. E a fazer fila para pagar. E a pagar mais do que as coisas valem. E a saber que cada vez pagar mais. E a procurar mais trabalho, para ganhar mais dinheiro, para ter com que pagar nas filas em que se cobra.

A gente se acostuma a andar na rua e ver cartazes. A abrir as revistas e ver anúncios. A ligar a televisão e assistir a comerciais. A ir ao cinema e engolir publicidade. A ser instigado, conduzido, desnorteado, lançado na infindável catarata dos produtos.

A gente se acostuma à poluição. Às salas fechadas de ar condicionado e cheiro de cigarro. À luz artificial de ligeiro tremor. Ao choque que os olhos levam na luz natural. Às bactérias da água potável. À contaminação da água do mar. À lenta morte dos rios. Se acostuma a não ouvir passarinho, a não ter galo de madrugada, a temer a hidrofobia dos cães, a não colher fruta no pé, a não ter sequer uma planta.

A gente se acostuma a coisas demais, para não sofrer. Em doses pequenas, tentando não perceber, vai afastando uma dor aqui, um ressentimento ali, uma revolta acolá. Se o cinema está cheio, a gente senta na primeira fila e torce um pouco o pescoço. Se a praia está contaminada, a gente molha só os pés e sua no resto do corpo. Se o trabalho está duro, a gente se consola pensando no fim de semana. E se no fim de semana não há muito o que fazer a gente vai dormir cedo e ainda fica satisfeito porque tem sempre sono atrasado.

A gente se acostuma para não se ralar na aspereza, para preservar a pele. Se acostuma para evitar feridas, sangramentos, para esquivar-se de faca e baioneta, para poupar o peito. A gente se acostuma para poupar a vida. Que aos poucos se gasta, e que, gasta de tanto acostumar, se perde de si mesma.


Marina Colasanti

01 junho 2023

Unimed Taubaté, IDSS e indicadores de saúde


O ANS decretou, pela Resolução Operacional 2813, de 26/05/2023, a "concessão da portabilidade especial de carências aos beneficiários" da Unimed Taubaté, o que equivale dizer que promoveu a liquidação da operadora. Os motivos, segundo aquela RO são "anormalidades econômico-financeiras e administrativas graves que colocam em risco a continuidade do atendimento à saúde". 

Uma análise rápida aos números da operadora mostram os seguintes indicadores:




Outra consulta rápida à ANS nos informa que a operadora não teve seu IDSS - Índice de Desempenho em Saúde Suplementar calculado no último período considerado pela agência, talvez prenunciando problemas.

A operadora, qualquer que seja seu tamanho, deve buscar, de forma obsessiva, a higidez de seus resultados, ou seja, deve buscar lucro. Uma boa indicação se esse lucro vem ou não é no índice de sinistralidade que, no caso da Unimed Taubaté, se mostrou bem alto em 2021 e 2022. Esse número, conjugado com o percentual das despesas administrativas, é determinante para o resultado final e, como se vê, para a sobrevivência da operadora.

O IDSS é um grande avanço promovido pela ANS. Seus pilares - Qualidade de Atenção à Saúde, Garantia de Acesso, Sustentabilidade no Mercado e Gestão de Processos e Regulação tratam de informar e instrumentalizar as análises de desempenho que, a partir do momento da análise, podem ser consideradas preditivas para ações corretivas. A falta dessa informação na referida operadora é um sintoma da existência de problemas.

Finalmente, há que se ter em mente que ou a situação dos números agravou-se de forma tal que a agência se viu obrigada a tomar a medida, ou ela é consequência de reclamações dos beneficiários. De qualquer forma, o que se vê é não basta ter gestão e domínio de números. É necessário aliar tecnologia, expertise e inovação para que o negócio continue saudável.  

13 março 2023

A Sìndrome do Sapo Fervido OU Porque os Problemas Crescem Até Saírem do Controle

É bem conhecida a síndrome do sapo fervido. Mas vamos lembrar: dizem que se um sapo for colocado numa panela com água aquecida, ele imediatamente salta para fora. Mas se ele for colocado numa panela com água fria e esta se aquecer aos poucos, a água chegará à fervura e matará o sapo sem que o sapo esboce reação.

Claro que é só uma alegoria, como a Caverna de Platão. Mas ela é ilustrativa dos motivos pelos quais os problemas, numa empresa, crescem até saírem do controle, chegando mesmo a configurar emergências (veja A Matriz de Eisenhower). Isso decorre, na grande maioria das vezes, da falta de medidas para gerenciar processos e, obviamente, da falta de correções de rumo.

No ambiente de altas volatilidades em que vivemos (normativa, legal, política, climática. segurança, etc.) empresas passam por grandes testes de seus pilares administrativos, relacionados, basicamente, a custos e receitas.

No quesito receitas, a resposta é quase que um padrão: aumentar as vendas, a qualquer custo. Já reside aí um problema, pois o custo total da venda não pode ser maior do que a receita por ela aferida. É a falta de controle a que nos referimos.

Na questão das despesas, há departamentos de empresas que entram e saem de crises fazendo as coisas exatamente do mesmo jeito. Ou, muito pior, agregando passos e tarefas para evitar situações indesejadas experimentadas durante as crises.

Num exemplo banal, há aquela empresa que certa vez teve uma dificuldade qualquer com a identificação de um cliente, o que gerou alguns problemas. Desde então, essa empresa, em qualquer atendimento, não somente exige o documento de identidade como o reproduz em xerocópia e o arquiva em suas dependências. Não é preciso dizer que os custos de cópias aumentaram, a necessidade de manutenção das máquinas copiadoras aumentou e, lamentavelmente, aumentou o tempo de atendimento ao cliente. Que, por sua vez, aumentou o tempo de espera por atendimento Que, por sua vez... 

Há uma certa tendência de não avaliar/reavaliar processos que não estejam dando problemas. A pergunta é: se não está dando problema, por que mexer?

Simples, muito simples!

Porque os processos são grandes ralos de tempo, o que é um custo em qualquer empresa. Processos estão afeitos à teoria da entropia, acumulando desperdícios por onde é encontrada. Dessa forma, aquele passo de "fotocopiar a identidade do cliente" se soma a outros tantos até que os custos de execução de uma dada atividade extrapolam os limites do razoável. E os envolvidos no processo, sequestrados pela Síndrome do Sapo Fervido, sequer se dão conta do tamanho do monstro que foi criado.

Embora todos sejam responsáveis, na abordagem de gestão de processos, pelo seu sucesso, especial carga deve ser atribuída ao gestor / gerente / líder. A este cabe exercer, em prol da sua equipe e da empresa, a dúvida sistemática socrática, procurando averiguar se todos os pressupostos da realização da atividade ainda se encontram válidos, agindo em casos de necessidade.

Mais fácil falar do que fazer?

Gestores hoje estão envolvidos em grandes urgências do dia a dia e, decorrência delas, de reuniões executivas e operacionais. Enquanto se combate o fogo na floresta, ninguém busca suas origens para evitar sua deflagração.

A abordagem de processos, antigamente baseada na reducionista arte da Organização & Métodos, ainda é um processo válido, desde que utilizado com isenção. Criticar o que está inadequado, priorizar o que agrega valor.

No caso das fotocópias, falta alguém perguntar, em alto e bom som: - O que estamos ganhando com isso (o processo)? E, na esteira da primeira pergunta: -- O custo compensa o benefício obtido?

Em um caso real, foi identificada que uma determinada ação (pretensamente mitigatória de perdas) custava, em média, quase dez vezes o valor que se alegava economizar. Ficaria o empresário satisfeito com essa situação?

A grande barreira para combater desperdícios desse tipo é que os custos decorrentes ou são invisíveis, ou são mascarados sob outras rubricas de despesas. Por exemplo, a quantidade adicional de funcionários para atender o cliente da fotocópia se esconde atrás da rubrica "mão de obra". O alto custo de manutenção das copiadoras é considerado como escolha indevida da máquina de cópia ou do parceiro de assistência técnica. Despesas de manutenção, portanto. 

E assim a água vai esquentando até que a fervura chegue. Essa fervura pode chegar em forma de redução de pessoal e, neste caso, o jeito vai ser fazer o que for possível com a mão de obra disponível (diminuída). Ou seja, com perda de qualidade.

Ainda bem que é só uma alegoria essa história do sapo...

06 março 2023

Evolução do enfoque da saúde suplementar - Visão das operadoras

Nos primórdios da Saúde Suplementar, as Operadoras de Planos de Saúde (OPS), ainda sob o impacto da nova regulação, procuraram formas de garantir ou otimizar o faturamento. Por isso, os primeiros modelos de sistemas idealizados tinham fortes funções administrativas, com pouco ou quase nada de assistencial.

As forças requeridas no software eram o cadastro e faturamento, conciliação com bancos e sistemas financeiros integrados. Era uma visão reducionista da complexidade do setor, mas que num primeiro momento foi fortalecida pela exiguidade de prazo para o funcionamento das novas regras.

Cedo as OPS se depararam com a necessidade de controlar os procedimentos solicitados e pagos, à frente das regras de cobertura, e o software se incorpou. Note-se que foram adicionadas mais regras administrativas, conquanto faziam a conciliação entre utilização e cobertura.

As regras de negócio continuaram evoluindo, criando-se o enfoque da análise de elegibilidade, baseada em três pilares: beneficiário, procedimento, prestador. Os sistemas foram especializados em analisar os pedidos de autorização ou pagamento de acordo com condições objetivas de prazos intervalares, gênero (beneficiário), contratação (prestador), regras técnicas de realização em função de condições objetivas (procedimentos). Registre-se, novamente, que estas regras são eminentemente administrativas, mesmo as técnicas citadas, pois tratam de condições de realização dos procedimentos.

Os softwares foram incorporando essas regras, que oferecem à OPS instrumentos para negar autorização para realização do procedimento ou glosar contas em desacordo.

Nas ações de auditoria, sejam de campo, sejam nas contas médicas apresentadas, essas regras ou funcionam para glosar as contas diretamente pelo sistema, ou são aplicadas de forma manual por profissionais de auditoria, baseados em experiência e conhecimentos práticos do auditor.

É forçoso destacar, mais uma vez, que essas ações todas, empreendidas por quase a totalidade das OPS no Brasil, são medidas administrativas (embora algumas envolvam médicos), visando a contenção do sinistro. Por essa abrangência, pode-se dizer que os softwares existentes no mercado adotam (alguns com grande eficiência e eficácia) medidas administrativas no seu dia-dia, praticamente limitando-se a isso. Experiências ditas inovadoras, entretanto, objetivam a mesma filosofia de regulação: diminuir a autorização e aumentar a glosa.

O que se deve esperar da tecnologia, então?


Poucas OPS se ocupam de manter o cidadão saudável. E aquelas que o fazem, não têm suporte tecnológico para tal. Pelo menos não no nível de especialização a que foi o software regulador. As negociações com os prestadores se focam na medicina curativa, procurando diminuir seu custo. Pouca ênfase de sucesso em ações preventivas eficazes e capazes de engajar o beneficiário. Muito disso, é verdade, dependeria da adesão do beneficiário, que tem se mostrado avesso a esse tipo de cuidado mais rigoroso.

Ações da ANS voltadas para prevenção e mesmo métodos alternativos de pagamento que promovam melhora na qualidade de vida do beneficiário ainda são iniciativas, por vezes heroicas, mas que raramente caem no mainstream das OPS.

Startups que atuam em nichos específicos tiveram grande expansão nos últimos anos, mas poderiam ser muito melhor aproveitadas se sua abordagem fosse holística em relação ao beneficiário. Imagine, por exemplo, um excelente APP de saúde mental convivendo com uma carga de sinistros alta decorrente de muitos portadores de doenças cardíacas. 

De mais a mais, o que rege e sempre regerá esse mercado é o dinheiro. A tecnologia tem de apresentar retorno, e um cuja estimativa seja crível. Um argumento da melhoria da qualidade de vida de um indíviduo não comove os decisores nesse mercado de risco financeiro tão grande.

Dessa forma, o próximo estágio da tecnologia é o da abordagem assistencial. Aquilo que há muito se promete, mas que não ganha tração. É a identificação, ou mesmo predição, daqueles portadores de morbidade; a adoção de melhores abordagens terapêuticas; adoção das melhores práticas de recuperação. O software da próxima geração deve interligar médicos pagos para manter a saúde dos ainda-nem--pacientes. E deve pagar para que os pacientes sejam seduzidos a não permitirem que sua doença se agrave novamente.

Quando a tecnologia atingir esse estágio, desde que as OPS estejam alinhadas, o foco da geração de custo da Saúde Suplementar se desviará da medicina curativa para a medicina preventiva. E todos sabemos que a prevenção custa menos do que a remediação (desculpando-me pelo pobre trocadilho...). 


19 janeiro 2023

As prioridades da ANS - Portaria Nº 1 - DIDES


A Portaria nº 1 da Diretoria de Desenvolvimento Setorial da ANS (DIDES) cria Grupo de Trabalho para "para ampliar a discussão técnica sobre temas relacionados ao Desenvolvimento Setorial, com ênfase na relação existente entre operadoras de plano de saúde e prestadores de serviço de saúde no âmbito do Comitê de Padronização das Informações em Saúde Suplementar". É uma medida muito bem-vinda, pois há arestas a serem aparadas (sempre haverá) no relacionamento entre esses dois atores.

Ambos estão representados por associações e sindicatos, e se fazem ouvir na ANS tanto grupalmente como individualmente, como no caso de operadoras e hospitais/prestadores mais poderosos. Realizam eventos, dão voz aos dirigentes e apresentam sua pauta de reivindicações sem entraves. Como normalmente a dor de um é também a de muitos outros, normalmente essas pautas recebem muito apoio.

Mas é preciso lembrar que há um outro ator na Saúde Suplementar, que é, ou deveria ser, o centro do processo. Embora muitos lemas arroguem que o beneficiário/paciente está no centro, na verdade ele está à margem de discussões destinadas a entender suas dificuldades, menos ainda destinadas a resolvê-las.

O consumidor, parte hipossuficiente na esmagadora maioria das relações de consumo, ainda o é mais quando se trata de contrato de plano de saúde. Seu desligamento desse contrato lhe causa falta de cobertura, seu retorno lhe acarretará, quase que certamente, carência e/ou cobertura parcial temporária, exceto nos casos de planos coletivos empresariais (com 30 vidas ou mais).

Esse hiposuficiente ser não tem meios de se articular com outros de mesma condição e convidar ilustres representantes da agência reguladora para se fazer ouvir. Aliás, se quer ser ouvido, fala no megafone da justiça, situação abominada pelas operadoras e merecedor de vários artigos sobre tal judicialização. Mesmo que sua dor seja compartihada por muitas outras pessoas...

A judicialização se dá nos casos em que compreende-se injustiçado o beneficiário, e tantos casos há que é preciso se perguntar se existe de fato a falta de justiça ou se é somente um traço cultural brasileiro, esse de "procurar seus direitos"...

A analisar as manifestações de sites especializados em reclamações, conclui-se que a gritaria é muita. E envolve desde questões administrativas até questões de atendimento (ou falta de) e fornecimento de medicamentos.

Nesse sentido, a ação da ANS é receber a reclamação e atuar, invisível ao reclamente, para que a operadora conheça a insatisfação e se manifeste, seja por ação ou por omissão (as famosas (?) NIP). Quando a agência divulga os números dessas reclamações, o faz somente com números absolutos e estatísticas, sem deixar a conhecer os desfechos individuais dos casos.

No arquivo disponível em 19/01/2022 (Competência 10/2022) referente ao índice de reclamações, há pouco mais de 212.000 reclamações assistênciais e pouco mais de 49.000 reclamações não assistenciais, num total aproximado de 261.000 reclamações.

É necessário registrar que a reclamação na ANS é um processo não tão fácil quanto se esperaria. Quem já chegou ao final do processo garante que a resposta da agência, na maioria das vezes, é meramente protolocar, limitando-se ao registro do normativo ou cláusula legal em que o assunto se insere. Ou seja, o reclamante não sabe se tem razão ou não... Talvez daí o motivo de procurar um profissional especializado em contenciosos...

Empresas que lidam diretamente com clientes, pessoas ou empresas, já se conscientizaram de que é preciso ouvir e entender cada problema. Há até aquelas que criaram fóruns de discussão para dali extrair os indícios de que necessita para evoluir. Essas empresas entenderam que aumentar a satisfação do cliente é aumentar sua fidelidade.

Mas são duas situações diferentes. A empresa somente existe se der lucro, uma entidade pública simplesmente existe. Aumentar a satisfação, poderíamos considerar, não é papel da agência, mas do legislador, que elaborou o arcabouço legal em que apoiam os normativos exarados pela ANS e a quem deveria incumbir as alterações necessárias.

Se bem que... não seria exatamente a mesma situação com as aspirações de operadoras e rede credenciada? Pode a ANS legislar de forma diferente da previsão legal sobre um determinado assunto? Se não pode melhorar a vida do beneficiário, poderia fazê-lo para os demais atores?

Macunaíma diria: "Muita saúva e pouca saúde, os males do Brasil são"...