Após a grande repercussão negativa da decisão do STJ sobre o Rol de Procedimentos da Agência Nacional de Saúde Suplementar, esta se viu no centro de muitas críticas de todos os setores. Em entrevista para o Estado de São Paulo (disponível para assinantes), o presidente da agência, Dr. Paulo Rebello, afirma que a ANS defende o beneficiário. Será?
Segundo a lei que criou a agência, Lei 9961/2000, "A ANS terá por finalidade institucional promover a defesa do interesse público na assistência suplementar à saúde, regulando as operadoras setoriais, inclusive quanto às suas relações com prestadores e consumidores, contribuindo para o desenvolvimento das ações de saúde no País" (artigo 3º).
Pelo enunciado da lei, o setor se compõe basicamente de três atores sob a tutela da ANS: as operadoras, os prestadores e os consumidores. De que forma proteger o beneficiário poderia ser considerado como uma atuação equidistante?
Pode-se se argumentar que o consumidor é a parte hipossuficiente na relação, e que por esse motivo a defesa pela ANS seria necessária. Entretanto, é preciso lembrar que a Lei 8078, chamada de Código de Defesa do Consumidor estabelece as bases em que essa proteção contra forças maiores deve acontecer.
Não por acaso, na definição de suas atribuições, o legislador menciona o Código de defesa do consumidor no seu artigo 4º: XXXVI - "articular-se com os órgãos de defesa do consumidor visando a eficácia da proteção e defesa do consumidor de serviços privados de assistência à saúde, observado o disposto na Lei no 8.078, de 11 de setembro de 1990.
Então, não é razoável supor que a agência atue em favor de qualquer dos atores de forma isolada.
Quanto às críticas ao posicionamento da agência na questão do Rol de Procedimentos, entendemos que não cabe à agência qualquer posicionamento que não decorra do conjunto legal que lhe incumbe normatizar e fiscalizar. Se a Lei 9656 (e as coorelacionadas) definem que ela elaborará um rol de procedimentos a ser observado nas coberturas, ela não poderia inovar além dessa atribuição legal. Sempre é bom lembrar que as normas das agências reguladoras estarão sempre sujeitas ao escrutínio legal, sendo que já houve decisões da agência derrubadas, por exemplo, pelo STF.
Dessa forma, não poderia a agência senão defender o Rol taxativo (exaustivo), que é o conceito com que o mercado trabalha desde a promulgação da lei.
A meu ver, as críticas seriam melhor direcionadas ao poder legislativo, que é o responsável, em primeira instância, por esse tipo de definição.
Há outros casos que deveriam ser objeto de melhor análise, tanto dos consumidores quando da ANS.
Regulação de procedimentos (autorização prévia)
Há uma norma da ANS (Resolução Normativa 259/2011) que estabelece os prazos máximos de atendimento de uma demanda de procedimento médico-hospitalar. Pela norma, o prazo máximo admitido é de 21 dias úteis (grifo nosso). Mas quando o procedimento tem a necessidade de passar por uma análise técnica (autorização prévia) o prazo pode ser bem maior. A RN 395/2016 estabelece que, nestes casos, a resposta deve ser tal que atenda ao prazo máximo estabelecido para o caso. Não é o que se observa, entretanto, na prática das operadoras. Algumas definem, por exemplo, 14 dias como prazo máximo, sem considerar o prazo máximo do procedimento.
Para agravar a situação, o beneficiário médio desconhece os prazos previstos e a própria norma. Como a norma exige que o beneficiário acione a operadora para exercer o direito a esse prazo limite, isso raramente acontece. Concorre para o problema o fato de que a operadora pode indicar qualquer prestador habilitado a realizar o procedimento. Caso o beneficiário queira escolher, tem de se submeter à dispinibilidade do escolhido.
Já testemunhamos casos em que o beneficiário aciona a operadora para que haja definição de profissional/entidade para garantia de atendimento e a operadora simplemente apresenta uma relação de seus credenciados, muitas vezes já consultados pelo paciente. Ou seja, o problema é do beneficiário. Nem todas as operadoras, nesses casos observados, se articulam com seus prestadores para agendar o atendimento, o que deveria o curso lógico das coisas.
A ANS age, nesses casos, quando há manifestação (reclamação) do beneficiário, Se este não conhece a norma e, por isto, não reclama, a ANS não tem mesmo como agir.
Um agravante para o problema é que, nos casos de regulação previstos pela operadora, embora haja normativo (Resolução CONSU nº 8) que estabelece a obrigatoriedade de ... informar clara e previamente ao consumidor... no instrumento de contrato e no livro ou indicador de serviços ... os mecanismos de regulação adotados esta norma não é observada por muitas operadoras. Analisando um contrato de plano individual de uma operadora de grande porte (mais de 100.000 beneficiários), há a seguinte previsão a esse respeito:
Os procedimentos que exigem autorização prévia poderão ser consultados através do telefone...
Isso dá ao beneficiário pouca ou nenhuma informação sobre como se processa de fato a regulação, e o torna refém dos processos da operadora. A informação contratual necessária engloba minimamente quais procedimentos estão sujeitos a regulação, quais são os requisitos de análise e o prazo máximo para que a decisão seja informada, mas não é o que se observa. É oportuno registrar que esses contratos não estão sujeitos a alteração decorrentes de negociação, sendo, portanto, de adesão. Essa característica poderia ser utilizada pela agência ao exigir que o contrato base lhe seja enviado, para validar esse tipo de cláusula.
Ainda sobre o prazo, é justo dizer que a Resolução Normativa 424/2017, que estabelece as regras para a realização da Junta Médica, estabelece, no seu artigo 4º, que o processo de autorização prévia não deve exceder o prazo máximo de atendimento estabelecido para o caso.
Mas na prática as negativas de autorização são direcionadas ao beneficiário, que pode ou não solicitar a junta médica. Muitas vezes não o faz, pela complexidade das regras, apesar de ser obrigação da operadora, ao informar a negativa, informar também a possibilidade de solicitar o parecer de uma junta médica ou odontológica.
Planos individuais/familiares
Não é segredo que os planos individuais e familiares estão em processo de diminuição. Isso se deve principalmente ao fato de que os reajustes para esses contratos não é definido pela ANS, mas sim de comum acordo entre as partes (exceção feita aos planos coletivos com menos de 30 vidas). Operadoras simplesmente deixaram de comercializar os planos de espécie, sem que isso infrinja qualquer lei.
Este é um exemplo de que a ANS não pode proteger o beneficiário. Por ser uma questão que lhe foge da alçada, esta é uma questão a ser enfrentada pelo legislador, a quem incumbe captar os desejos dos seus representados e positivá-los em regra jurídica.
Dessa forma, as críticas à ANS devido à sua falta de ação neste problema são injustas.
Entretanto, depois do anúncio recente do aumento recorde dos contratos individuais e familiares, diversas empresas se manifestaram apresentando denúncias de reajustes de até 80%.
Existe um arcabouço legal, baseado na livre contratação e disposição de cláusulas contratuais que faz com que a empresa celebre contratos com quem bem entenda, tendo o cuidado de analisar bem as cláusulas do que está contratando. Normalmente, o reajuste se baseará em critérios previamente ajustados, o que, em tese, o tornaria adequado. Não é o que se vê. Os critérios de reajuste são muito complexos e dependem de informações que ou não estão disponíveis, ou que o contratante não sabe analisar. Muitas empresas acabam judicializando o reajuste, cabendo à justica a decisão final.
Cabe aqui lembrar que o celebrante do contrato é a pessoa jurídica, que o faz em benefício de seus funcionários e, eventualmente, familiares. Neste caso, há a atuação do poder judiciário, que repetidas vezes revê esses aumentos.
Acesso a serviços de urgência e emergência
Um beneficiário de uma determinada operadora, necessitando de pronto atendimento, se dirigiu ao hospital que sabia prestar esse serviço. Lá chegando, foi informado de que o serviço não estava mais disponível. Foi a outro prestador hospitalar, com o mesmo resultado. Mas no portal coprativo da operadora ambos estavam listados. Em um terceiro, ficou sabendo que o serviços estava, sim, disponível, mas somente para atendimento de ginecologia e obstetrícia (um hospital geral). O beneficiário finalmente teve atendimento no SUS.
Embora haja a obrigatoriedade de divulgação da rede assistencial em portais corporativos, não há uma regra específica sobre serviços de urgência e emergência. Dessa forma, após o relato do beneficiário, consultamos portais de diversas operadoras para ver como a questão era tratada. Alguns apresentam esses serviços de forma isolada. Outros, não. Dentre os que não apresentam, estão várias operadoras de grande porte (acima de 100.000 vidas).
Serviços de urgência e emergência têm um tratamento especial na lei e nas normas. Têm carência diferenciada, não podem ser objeto de processos de autorização prévia, têm uma previsão de garantia de atendimento à parte. Por isso mesmo, merecem destaque na consulta da rede. Não somente quem presta os serviços, mas também que serviço presta. No caso citado, o beneficiário foi a um hospital geral e não foi atendido, porque o contrato com a operadora não abrangia o serviço.
Não há que culpar a operadora pelo fato. O que é exigido pela norma está lá, na grande maioria das vezes. Afinal, o atendimento no SUS vai gerar uma cobrança a essa operadora, muitas vezes maior do que o valor que pagaria diretamente. O que pode mudar é a exigência prevista na norma, ao estabelecer a obrigatoriedade dessas informações (literalmente) vitais.
Falando com a ANS
O beneficiário pode se dirigir à ANS para tirar dúvidas? Embora a resposta seja positiva, quem tentar pode se frustrar.
As respostas dadas pela agência a que tivemos acesso simplemente replicam trechos de normativos, sem haver posicionamento claro sobre o assunto. Se a questão se referir, por exemplo, a Doenças e Lesões Preexistentes, pode contar que na resposta haverá recortes das normas sobre o assunto.
Quem espera uma resposta assertiva, decisiva, vai se decepcionar.
Não poderia ser diferente, não está dentre as atribuições da ANS ser a tutora dos beneficiários. Por outro lado, não poderia ser mais diferente da afirmação de seu presidente,
“Nosso trabalho é defender o beneficiário”
Paulo Rebello, O Estado de São Paulo, 13/06/2022
Outras entidades se ocupam dessa defesa. Sem o profundo conhecimento da norma infralegal, é verdade. Exemplo dessa atenção com o beneficiário / consumidor são o IDEC e o sistema PROCON.
Enquanto isso, A ANS age, baseada em quantidade de reclamações e constatações, contra as operadoras mais reclamadas/autuadas, chegando mesmo a liquidá-las quando entende que a situação é insustentável, baseada nas leis e normativos inerentes.
Justiça seja feita: quando a ANS age no caso individual, a operadora recebe uma NIP (Notificação de Intermediação Premilinar, previsto na RN 483/2022) que normalmente provoca uma reação imediata, muitas vezes solucionando a demanda do beneficiário.
A lei 9.656 já tem 24 anos (praticamente). Algumas de suas premissas precisam de revisão, principalmente no que se refere à diminuição dos contrato individuais e familiares. Depois desse tempo, outras necessidades surgiram e outros fatos se impuseram. Cabe ao poder legislativo, na melhor aplicação da Teoria Tridimensional do Direito, aperfeiçoar uma lei que foi tão bem acolhida pela sociedade.
Foto da capa: Fonte: Pixabay.